COLUNA

Três pra trás, entrega as bets

Thays Pretti

O que uma brincadeira de rua pode ensinar sobre relacionamentos

Se eu dissesse que fui uma criança que brincava muito na rua, estaria mentindo. Sempre fui mais mental do que física, então meus divertimentos envolviam preferencialmente jogos de computador, videogame ou tabuleiro do que esportes e assemelhados. Isso, porém, não me impediu de aprender algumas brincadeiras de rua. O bets foi uma delas.

Bete-ombro, bete, tacobol, bets-lombo, bente-alta, taco, jogo de taco ou pau na lata: chamem como preferirem. Provável descendente do críquete, o objetivo do jogo é que uma dupla faça pontos cruzando os tacos no meio do campo, enquanto outra dupla tenta derrubar um dos alvos da primeira (e, assim, trocar de lugar com ela).

Mais do que o jogo em si, o que guardei dele foi uma de suas regras: o curioso “três pra trás, entrega as bets”. Essa regra determina que, se a bola encostar no taco de raspão e escapar para trás da base, a partida segue, mas apenas duas vezes por rodada. Na terceira vez, a dupla passa a posse do taco.

Por que estou falando sobre bets, afinal?

Dia desses, uma amiga comentou a respeito de um rapaz que ela estava conhecendo. Ele era atencioso, bastante presente, mas fez algo que ela não gostou. Ou seja, dentro da dinâmica da relação deles, cometeu um erro.

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Apesar de ele ter pedido desculpas, ela trouxe a seguinte questão para uma conversa: até quando a gente perdoa/tolera ações/comportamentos que podem prejudicar nossa relação com alguém?

Eu, que já andava às voltas com essa reflexão, nem pensei muito para lançar, logo após a pergunta: “Três pra trás, entrega as bets”.

Minha amiga não estava com as regras do jogo tão frescas na memória quanto eu, então precisei fazer um preâmbulo para explicar que raios eu queria dizer com aquilo. Mas, no fim, é uma regra muito simples de aplicar.

Em primeiro lugar, temos que aceitar que as pessoas erram. Isso é um ponto importante, nós também erramos e certamente gostaríamos de compreensão. Então, tendo a achar que um primeiro erro é bastante tolerável e abre espaço para haver uma conversa franca sobre expectativas, sentimentos, limites, definições… ou seja, abre espaço para pessoas adultas lidarem com suas relações com maturidade. É “um pra trás”.

Preciso abrir um parêntese aqui. As pessoas são diferentes. O que é considerado um erro para uma pessoa pode não ser para outra, e a ideia de “erro” depende também do tipo de relação sobre a qual estamos falando, como é a dinâmica. Mas, a partir do momento que sabemos que algo machuca alguém com quem temos algum tipo de relação, certas questões precisam ser levantadas (Posso mudar isso? Quero mudar isso? Quais as consequências de mudar ou não mudar?).

Além disso, há erros e erros. Estamos falando de ajustes de perspectiva sobre relacionamentos e outras questões pequenas. Não entram aqui violências ou qualquer coisa que esbarre no crime. Nesses casos, não pode haver “três pra trás”. O primeiro erro é sempre definitivo. Fecha parêntese.

No caso de existir a possibilidade de uma segunda chance, a repetição de um mesmo erro (ou um erro muito parecido) poderia nem acontecer, uma vez que – idealmente – as expectativas e limites já foram estabelecidos. Mas pessoas são pessoas. Além disso, pode ter restado alguma rebarba para aparar, outros ajustes na relação. Ou a coisa pode não ter sido tão bem conversada: comunicar sentimentos e dores nem sempre é uma tarefa fácil. A gente tenta de novo, conversa, alinha as expectativas mais uma vez. Porém, aqui é o momento em que vale acender um alerta. É o “dois pra trás”.

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Se depois de algo acontecer, se repetir e ser conversado duas vezes ainda houver reincidência, pode ser que aquele erro (ou ação, traço, comportamento etc.) seja algo muito constitutivo do outro enquanto sujeito e a pessoa não consiga ou não queira realmente mudar. Se isso for um impedimento para a relação, talvez seja melhor cada um seguir seu caminho. “Três pra trás, entrega as bets”.

Claro que não há regras externas para relacionamentos: a dinâmica se desenvolve e estabelece a partir dos envolvidos. Então, você até pode, sim, passar a vida toda tolerando os mesmos erros, ainda que te magoem. Você é livre e faz o que bem entender. Mas a que preço, não é mesmo? Afinal, se te machuca e é impossível mudar, mesmo que o outro tenha consciência de que te machuca, será que esse é realmente o melhor lugar e a melhor relação na qual você pode estar? Por que você permite que essa pessoa repetidamente te machuque, quando ela sabe que está te machucando? É de se pensar.

Tenho usado essa regra para observar diversos tipos de relação, amorosas, profissionais, familiares, de amizade. Mesmo retroativamente, ela serve para analisar relacionamentos anteriores e entender se em algum momento fui injusta ou se, de repente, fui tolerante demais.

É importante que se diga aqui que não sou especialista em relacionamentos. Sou apenas uma pessoa (libriana, vale registrar) buscando que minhas relações sejam equilibradas, justas e significativas. Para isso, eu acho que é importante permitir que as pessoas sejam quem são, mas, ao mesmo tempo, a gente tem que entender e respeitar nossos próprios limites na relação com o outro. Dar liberdade para alguém ser quem é em uma relação não pode nos aprisionar ou ferir como consequência.

Por isso gosto tanto da regra dos “três pra trás”. Ela é equilibrada, permite a falha e favorece o diálogo. Mas não incentiva a manutenção da dor. Afinal, em algum momento precisamos entender que, como defende um amigo meu, “ou soma, ou some”. É difícil discordar dessa máxima.

Então, segurem firmemente as bets e coloquem a bola para girar.

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Dicas de Mulher.

Escritora, autora de "A mulher que ri", "Efêmeras" e "Do Silêncio". Apaixonada por Clarice Lispector, clubes de leitura e pessoas. Gosta de listar coisas de três em três.