Sociedade

Mulheridades possíveis, necessárias e válidas

Do lado de cá da tela, fico pensando em quem é que tá aí, através da janela, passeando pela nossa casinha Dicas de Mulher. Entra, puxa uma cadeira, passa um cafezinho e vamos de prosa. Quero saber do seu próximo corte de cabelo, do vestido que você escolheu para o domingo. Como você consegue? Madruga, pega ônibus, trabalha, come marmita, bate o ponto, volta embora, busca as crianças na escola, dá atenção para a família. Calma, para e respira.

Todos os dias, conversamos com mulheres de diferentes faixas etárias, estilo de vida, gostos e paixões. Do norte ao sul, buscas e respostas se conectam. A gente se aprende no mútuo: vocês com as nossas matérias, nós com a pluralidade que cabe na palavra mulher. Uma leitora comentou:

“Fiquei muito entusiasmada e empolgada para bordar. Minha querida avó bordava, fazia crochê muito bem e vendia. Agora que aposentei, vou tentar. Assim, recordo da vovó que tanto tenho saudades. Obrigada!”

Obrigada, você. Esse comentário chega e deixa o coração quentinho. Somos a nesga da linha de cada mulher que veio antes de nós. Somos um alinhavo no tempo, tecendo saudades, amores, afetos, lágrimas, encontros e partidas. A recordação é um bordado sem fim, passado de geração em geração para deixarmos nossa marca na história.

A recordação é herança. No 8 de março, não deixe que um ‘parabéns, mulher’ faça você esquecer que essa data carrega a luta, o suor e a vida de muitas das nossas. Não precisa se prender às frases do tipo ‘não queremos flores, queremos direitos’. Queremos flores, sim! Pede uma jiboia pendente, uma costela-de-adão, uma espada-de-são-jorge, e enfeite a sua sala.

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Eu sempre quero flores, todos os dias. Mas isso não exclui o meu direito de exigir direitos. Também quero chocolate, afazeres domésticos compartilhados, igualdade salarial, sambinha no fim da tarde. Quero mulheres beijando mulheres sem medo. Quero representatividade. O sorriso fica largo quando abro a caixa de comentários e vejo que o seu acesso não é apenas estatística – é troca. Na matéria sobre séries lésbicas, uma leitora disse:

“É importante porque mostra que nós mulheres existimos e estamos na luta para acabar com a homofobia que, infelizmente, ainda existe nos dias de hoje. Já assisti algumas séries citadas e me sinto muito bem representada, o que me deixa bastante contente e feliz”.

Meu dia fica mais bonito. Eu dou risada, me divirto. Imagino cada situação. É muito bom saber que as cantadas pesadas realmente funcionam: “todas são ótimas e deram supercerto. Se você não quer ficar com as pernas trêmulas, não use essas cantadas”. Eu queria ser um mosquitinho só pra ver esta situação: “muito bom, meu boy até ficou com vergonha”. Também consigo entender seu lado, amiga: “doloroso para quem não tem ninguém para cantar”. Nossa hora vai chegar, acredite.

Nem todos os dias são legais. Nem todas as conversas são fáceis. Escrever para mulheres é entrar em contato com uma realidade que continua oprimindo, matando e violentando nossa existência. Em 2023, nosso estudo de audiência mostrou que 75% das leitoras já sofreram assédio sexual.

Recebemos relato de abuso: “eu fui violentada com 5 anos. Fui criada sem poder me conhecer”. Desejo de superação: “muito bom esse texto me encorajando a sair de um relacionamento abusivo”. Machismo: “meu parceiro só busca o próprio prazer. Não importa se estou chateada, carente ou com tesão. Sinto que ele ainda está comigo porque cuido da casa”.

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Muitas mulheres chegam com a sensação de culpa, se sentem feias, erradas, desmerecedoras de amor. Acreditam em um corpo perfeito, no feminino ideal. Não se alcança o horizonte do dia para a noite. O percurso é longo longo, porém acredito nos pequenos passos. Acredito nas trocas e diálogos, como neste comentário:

“Muito importante esta iniciativa de esclarecimento. E o envolvimento com a simplicidade na exposição. Parabéns. Vou divulgar. Esclarecer é uma arma contra a cultura de inferiorização social e profissional do feminino”.

A teoria rebuscada não chega na dona Neide. Os termos em inglês se enrolam e se esvaziam na língua da mulher do dia a dia. É sobre o cuidado com o discurso. Eu quero escrever para você que tá no corre. Quero ser lida na fila do pão, na varanda, no busão, depois do almoço, antes de dormir, de conversa.

É nóiz nesse mundão. Têm dias que não banco a autoestima, não me sinto boa o suficiente, bonita o suficiente, adequada o suficiente. Perco a voz, desaprendo a escrita, minimizo o efeito de metáforas preconceituosas. Têm dias que penso – e tenho certeza – que seria mais fácil ter nascido homem. Ser mulher é um exercício de respiração. Que sempre haja fôlego.

Porque preciso de muito inspire e expire para lidar com os comentários balelas de alguns homens. Ódio gratuito. O pior é que todo argumento tem bosta no meio: “uma grande bosta”, “que bosta”, “uma bosta”. Pega essa bosta e fertiliza o pensamento aí, amado! Vai que floresce algo de bom. Se não florescer, minha meta é não dar trela pra gente sem noção.

Vamos cuidar das nossas, radicalizar o afeto. Marque um café com a amiga, coloque a fofoca em dia, seja a rede de apoio de alguém. Tenha uma rede de apoio. Pegue a placa da Uber, pede para ela avisar quando chegar em casa. Compartilhe leituras. Não aponte dedos, ofereça abraços. Não esqueça que enquanto a gente disputa espaço entre mulheres, enquanto nos odiamos no ambiente de trabalho, o sistema gira, capota e permanece o mesmo.

A heteronormatividade gruda nos nossos hábitos, olhos e conceitos. Demorei pra assumir que minha realidade é atravessada por pequenas violências, que o meu corpo não tem a autorização social para ser amado. Um dia me perguntaram: por que você se veste assim? Já investigou? Se quer ser reconhecida, lida, por que não começa a usar umas roupas mais femininas? Ninguém questiona o vestidinho florido da sapapaty.

A gente passa pano porque a pessoa é colega, só estava brincando, não falou por mal. Seja lésbica, mas seja feminina. Esperam que eu ande com uma caixa de ferramenta, abra a porta do carro, fure as paredes. Preciso provar que sou boa na escrita. A pessoa me olha de cima em baixo com um ar meio duvidoso, como se o meu portfólio e a minha aparência não pudessem coabitar a mesma realidade. Tem certeza que você consegue escrever sobre assunto de mulher? Basta um pisco e o feminismo cai na lógica opressora.

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O problema não é estar dentro do padrão. O problema é não reconhecer que existe um mundo fora do padrão. Pra cada pessoa que me lê nesse dia, que amanhã será só mais um dia no calendário, gostaria, com toda a cafonice, que meu texto chegasse como uma carta urgente de amor: há muitas mulheridades possíveis, necessárias e válidas.

Toda vez que você me lê, a gente se torna um pouquinho amigas. Acredito na escrita como ponto de encontro, fofoca, compartilhamentos e trocas. Sou mestre em literatura. Poeta. Revisora. Redadora. Que o nosso tempo juntas seja divertido.