Sociedade

Lésbica, Caminhoneira, Fancha, Butch, Sapa: Sapatão – e com Orgulho

Dicas de Mulher

Atualizado em 02.10.23

Antes de ser Orgulho, foram muitos outros sentimentos. Eu estava crescendo, o corpo desconfortável. Nunca tinha visto uma pessoa LGBTQIA+. Minhas amigas matavam aula para beijar meninos atrás do ginásio da escola. Eu não. O tal do arrepio, do perder o fôlego, ir às nuvens… não conhecia – da primeira, segunda, terceira, todas as vezes que beijei meninos, só senti gosto de boca. Havia algo de esquisito em mim e ninguém podia saber.

Então, numa dessas brincadeiras – e só para treinar – ela me beijou. Não podia ser. Eu não podia gostar daquilo. Daquilo o quê? De memória, essa foi a primeira vez que soube da possibilidade de um beijo entre mulheres, e eu era uma delas. Em pregações da igreja, já tinha escutado a palavra homossexualidade (corrijo, sempre diziam homossexualismo, com o sufixo de doença), sabia que isso existia, esse tipo de gente, mas não na minha casa, na minha família, na nossa religião. Fui criada para ser decente, não podia gostar daquilo. Foi culpa, pecado, medo, pesadelo e a promessa de nunca mais repetir. No dia seguinte, promessa quebrada.

Durante três anos, vivi entre o céu e o inferno de ser mulher e amar mulher. Os três primeiros meses foram os piores. Deus estava vendo tudo. Minha mãe ia morrer do coração. Eu nunca teria um trabalho. Cidade pequena, quando os vizinhos começaram a fofocar, arrumei um namoradinho de mentira. Minha família ficou orgulhosa. Nem de longe estava em um relacionamento saudável, mas ninguém viu, eu não via. Nos cantos escuros dos muros, continuei beijando mulher.

Ela tinha 20 anos, queria namorar na rua e ameaçava contar para todo mundo. Eu, 15. Chorava e prometia: um dia, um dia. Comecei a assistir séries lésbicas e, em ‘The L Word’, vi a pontinha do arco-íris. Porém, recusava o rótulo – “eu não gosto de mulher, só de você!” Precisei sair de casa para entender a importância de nomear quem eu sou no mundo. Demorei um tanto para dizer em voz alta, sem medo da presença alheia, “Eu sou Lésbica” e mais um tanto para sentir Orgulho.

Há 10 anos fora da casa dos meus pais, depois de um baita processo (que continua), hoje, neste espaço, um site que conversa diretamente com mulheres, celebro o Dia do Orgulho LGBTQIA+: para todas as orientações sexuais, todas as identidades de gênero, todos os existires. Celebro a minha existência e, principalmente, a memória e a história de pessoas que precisaram – ainda precisamos – lutar para naturalizar o amor, para exercer o direito de ser.

Sobre vivência: o Dia do Orgulho LGBTQIA+

Entra ano, sai ano, junho chega e aparecem pessoas destilando ódio, reclamando da inexistência de um dia do orgulho heterossexual. Eu queria muito não precisar de um dia para lembrar que a homofobia existe, que o Brasil lidera a lista de países com o maior número de pessoas LGBTQIA+ assassinadas, que a expectativa de vida de travestis e transexuais é de 35 anos. Veja bem, não acho que ser heterossexual seja assim tão perigoso socialmente a ponto de precisar de uma data para garantir o direito de existir. A sociedade não impede nem trata com violência os heterossexuais.

Não é para fazer gracinha, muito menos ser bonitinho. 28 de junho é o Dia do Orgulho LGBTQIA+ porque lá em 1969, na mesma data, em um gueto de Nova York, no bar Stonewall, a violência policial colocou em risco a vida de gays, lésbicas e travestis. Stormé DeLarverie, mulher, afro-americana, lésbica, caminhoneira, drag queen, segurança voluntária em defesa das minorias, foi uma das vozes de levante. Enquanto apanhava de opressores, ela gritava à multidão – por que vocês não estão fazendo nada?

E por que vocês ainda não estão fazendo nada? A LGBTfobia mata, desumaniza e silencia. Na adolescência, eu gostaria de ter tido referências. Era uma ratinha de biblioteca, mas só soube que livros LGBTQIA+ existiam anos depois, na internet. Quantas escritoras lésbicas você conheceu na escola? Quantos livros que trazem romance entre duas mulheres seus professores te apresentaram? Não, nunca, jamais. E olha que, nos anos 2000, muitos passos já haviam sido caminhados. Mas, na cidade em que cresci, o amor continua se escondendo pelas vielas.

Naquele 28 de junho, em Stonewall, as pessoas fizeram alguma coisa. A América Latina já estava fazendo. Continuaremos. No Brasil, em 1985, a homossexualidade foi retirada da lista de transtornos mentais. Em 2013, o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo foi legalizado. Em 2018, transgêneros conquistaram o direito de alterar o nome e o sexo no registro civil. Em 2019, a LGBTfobia foi criminalizada. Tudo isso é motivo de Orgulho.

É preciso lembrar para manter a história visível. Caso contrário, há grandes chances de os direitos serem engolidos. Por isso, a Parada do Orgulho LGBTQIA+ (sem a parafernália mercadológica) é tão importante. Em 1997, havia 2 mil pessoas na Avenida Paulista. Em 2023, mais de 3 milhões. A bandeira do Brasil abriu a marcha sob o tema: “Queremos políticas sociais para LGBT+, por inteiro e não pela metade”. É nossa. Dá um pouquinho de horizonte.

Sair da casa dos meus pais foi uma escolha de vida. Outro dia, encontrei minha professora de ciências do ensino fundamental. Enquanto eu passava a adolescência tentando entender o que havia de errado comigo, ela performava a família tradicional. Nós duas, em silêncio, na mesma sala de aula, uma sem saber da outra. Ela também fez sua escolha de vida, foi embora da cidade pequena. Aos 50 anos, está namorando uma mulher. Esse encontro é motivo de Orgulho. Assim como eu e minha professora, tantas outras pessoas precisam se mudar de cidade e se afastar da família para começar a viver. Precisa mesmo ser assim?

Quando entrei na universidade, estava com 18 anos. Morar sozinha era assustadoramente libertador. Porém, vieram outros perrengues, boletos e medos. Meu primeiro emprego foi em uma escola de educação infantil. Diminuí o tamanho do alargador da orelha e tirei o piercing do nariz. Todas as manhãs, escolhia a roupa do dia pensando em como agradar minha coordenadora. E se alguém descobrisse que gosto de mulher? Fiquei quieta e tentei incorporar uma feminilidade que nunca me coube. Até hoje, o mercado de trabalho não é um lugar seguro para pessoas LGBTQIA+. Apenas 38% das mulheres lésbicas se assumem no serviço e elas estão mais suscetíveis ao assédio moral.

Em São Paulo, apenas 14% das mulheres trans e travestis possuem emprego formal. Muitas relatam que já sofreram transfobia em empresas. As culturas organizacionais precisam ser educadas. É preciso discutir empregabilidade e inclusão. Depois da pandemia da Covid-19, pessoas LGBTQIA+ foram as que mais sofreram com ansiedade e depressão ao retornarem para o trabalho presencial. Ao longo dos anos, alguns registros na minha carteira ficaram marcados com piadas homofóbicas. Já na casa dos 27, quando me vi em um ambiente de trabalho saudável, estranhei, desconfiei. Mas, sim, é direito nosso.

Por instinto de sobrevivência, com os anos calejados, convivo em uma bolha social necessária, ao lado de pessoas que me aceitam e me enxergam. Entretanto, o mundo não é um lugar seguro. De vez em quando, um carro quase me atropela na bike, o motorista coloca a cabeça para fora e grita – ‘saí daí, sapatão!’ Sou mesmo, com muito Orgulho. Dia desses, no caixa do supermercado, a senhora me chamou de moço. Paguei a conta e saí. Na porta, havia um panfleto sobre o mês do Orgulho LGBTQIA+. Fui embora pensando em como é perigoso transformar uma causa em consumo, todas as formas de amor em slogan. Esvaziar o sentido invisibiliza a luta. O amor precisa ser político.

Nosso Orgulho jamais será discreto

“Gostar de mulher até vai, mas precisa beijar na rua?” Lá com a minha primeira namorada, a gente usava anel de coquinho. Um símbolo de reconhecimento. Isso não era discreto. Minha roupa não é discreta. Eu não sou discreta. Lésbica. Sapatão. Caminhoneira. Para uma parte da sociedade, você até pode gostar de mulher, mas precisa se portar como hétero.

É por isso que precisamos sim beijar na rua. Se não quiser ver, que olhe para outro lado. Oxe! Já vi tanto casal hétero se beijando. Pedi? Não pedi e, mesmo assim, vi. Isso é conviver em sociedade. Direitos iguais. Cansei de filmes lésbicos sem final feliz. Quero comédia de Natal, com filhos, amigos e cachorros. Sou a favor do Ministério do Namoro. Do riso solto, sem medo. Quero qualidade de vida, acesso à educação, trabalho e políticas públicas para todas as pessoas LGBTQIA+.

Acredito em um movimento LGBTQIA+ que não esquece de suas origens. Um Orgulho que não se desvincula das questões de classe, raça e gênero. A visibilidade propagada pelas mídias não mostra a realidade de corpos dissidentes, diferentes. A representatividade do mercado não faz nada pelas pessoas marginalizadas.

Mesmo a série ‘The L Word’ (2004 – 2009), que foi revolucionária para a época e despertou em muitas pessoas, como em mim, o sentimento de pertencimento, quando retorna com o reboot ‘The L Word – Generation Q’ (2019), continua reproduzindo padrões heteronormativos. Cria uma espécie de paraíso da fantasia, com mulheres brancas, magras e ricas – o que não me representa e não representa grande parte das vivências lésbicas.

Basta de migalhas, fetichização e objetificação. Chega de olhar o mundo pelas lentes do binarismo. A diversidade é colorida. Existimos. Resistimos.

Até hoje, na casa dos meus pais, eu ser lésbica é um assunto velado. Não falamos sobre – bom, na verdade, mal nos falamos. Já não sei me esconder. Estou cansada da solidão. Ao ir embora, construí a minha casa. Perdi muitas coisas, mas tudo o que perdi não me cabia. Ganhei outras tantas. Compartilho apartamento com dois gatos, uma cachorrinha idosa, umas plantas teimosas e uma amiga, bissexual. A família que escolhi para mim.

Meu desejo é que cada vez mais pessoas possam se assumir com suavidade e apoio familiar. Quero acreditar no possível. Como diz a música de Johnny Hooker: “Ninguém vai poder querer nos dizer como amar”. E mais, nas páginas da história, nossa revolução não será discreta. Será Orgulho.

Toda vez que você me lê, a gente se torna um pouquinho amigas. Acredito na escrita como ponto de encontro, fofoca, compartilhamentos e trocas. Sou mestre em literatura. Poeta. Revisora. Redadora. Que o nosso tempo juntas seja divertido.