Sociedade

Feminismo e cristianismo: esses dois movimentos podem coexistir?

Dicas de Mulher

Teóloga e historiadora falam sobre os aspectos que distanciam e aproximam a fé e a luta pelos direitos das mulheres nos dias atuais

Atualizado em 16.11.22
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Não é de hoje que se discute o feminismo em diversos âmbitos da vida humana. Como um conceito que preza pela igualdade de gênero e pelos direitos da mulher, o tema não só passa pelo campo social, mas também pelo espaço profissional, pessoal, cultural e religioso. Neste último caso, diversas são as dúvidas em relação à temática. Afinal, será que é possível ser feminista e cristã?

Uma vez que ambos os temas se unem em determinados aspectos, como a igualdade dos seres humanos perante Deus, e se distanciam em outros que retratam questões que inferiorizam socialmente a figura feminina, o questionamento acima colocado, muitas vezes, expõe opiniões diferentes.

Pensando nisso, o Dicas de Mulher conversou com a historiadora e doutoranda em Ciências da Religião, Agnes Alencar, e com a teóloga, doutora em Ciências da Religião, Ana Ester Pádua Freire, para esclarecer as dúvidas em relação ao assunto e falar sobre importância do tema nos dias atuais. Veja abaixo!

Feminismo e cristianismo

Para contextualizar, como dito anteriormente, o feminismo é um movimento social e político cujo objetivo é alcançar a igualdade de gênero, combater a violência contra a mulher e lutar pelos direitos das mulheres. Por sua vez, o cristianismo é um movimento religioso pautado pela crença e obediência a Jesus Cristo.

A partir da compreensão dos dois conceitos, pode parecer complicado uni-los. Sobre isso, Agnes explica que, por conta da tradição patriarcal que permeia a religião, “existe uma construção histórica que separa o feminismo do cristianismo como se fossem duas coisas opostas, antagônicas”. Entretanto, “tanto o feminismo quanto o cristianismo devem ser compreendidos como realidades plurais marcadas pelo contexto histórico que se inserem e pelas vidas que representam”, afirma Ana Ester.

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Dessa forma, a historiadora e a teóloga pontuam sobre a possibilidade da união entre os movimentos. Ana Ester explica que, mesmo sendo colocados como opostos e conflitantes, “não é somente possível ser feminista e cristã, mas é fundamental que se seja feminista e cristã. Os dois movimentos são complementares”.

“Nós temos todo um movimento feminista dentro do cristianismo, um movimento de uma teologia feminista, de teólogas feministas, comprometidas com pautas de libertação, com releituras do texto bíblico”, ressalta Agnes. Além disso, ela esclarece que reler a bíblia a partir de uma ótica feminina pode aguçar a percepção da relevância das mulheres nos textos e desconstruir a visão de que são apenas subservientes e submissas.

A historiadora afirma também que mesmo a teologia sendo um campo predominantemente masculino e os estudos bíblicos serem realizados a partir da ótica masculina, é crucial “retomar o controle que nos foi tirado e ler esse texto a partir de quem nós somos, do nosso corpo, do nosso lugar, do nosso chão”, ou seja, da perspectiva feminina.

O feminismo cristão e suas implicações

Para além da conjunção dos dois conceitos, é importante ressaltar que existe o feminismo cristão, que, de acordo com Agnes “é um movimento amplo que tem muitas vertentes”, como o feminismo negro cristão, o feminismo latino-americano cristão, o mulherismo e o feminismo pautado pela teologia queer.

A historiadora esclarece que o feminismo, entendido como cristão, surge em conjunto com outras teologias marginais, “por exemplo, a teologia negra e a teologia da libertação”, e busca construir novas percepções sobre a mulher no contexto religioso, se tornando assim “um processo de retomada de voz”.

Ana Ester, por sua vez, afirma que prefere a ideia de cristianismo feminista, pois, segundo ela, “é o feminismo que adjetiva a experiência de fé”, modificando assim suas percepções em relação aos conceitos. Para ela, o “cristianismo feminista seria um cristianismo que foi transformado pela tomada de consciência feminista, que desafia as desigualdades de gênero e propõe uma experiência religiosa mais justa e igualitária”.

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Falando em igualdade, Ana Ester e Agnes afirmam que o cristianismo feminista abre caminhos para o protagonismo da mulher, tanto na fé quanto na sociedade. A historiadora explica que “o feminismo cristão defende que as mulheres têm direito à fala, que as mulheres não podem ser silenciadas, defende o fim da violência contra a mulher, defende que esse corpo feminino é um corpo imagem e semelhança de Deus, que faz teologia”.

Segundo ela, a releitura do texto bíblico a partir de uma ótica feminista propõe novos caminhos para as mulheres, devolvendo a elas a liberdade, uma vez que “o texto bíblico não é esse espaço de opressão” que serve para silenciar e/ou acusar o público feminino. “Pregar um cristianismo que não esteja comprometido com a dignidade da mulher é pregar um cristianismo no mínimo incompleto”, ressalta Agnes.

Além disso, Ana Ester esclarece que “a pauta de um feminismo cristão, ou um cristianismo feminista, é menos sobre se manter o que se tem, e mais sobre se reivindicar o que não se tem”. A doutora em ciência da religião conta que o objetivo desse fundamento é, na verdade, transformar o papel da mulher que “historicamente foi silenciada e invisibilizada pelo cristianismo hegemônico”, reivindicando sua relevância “dentro da experiência da fé”.

O cristianismo e o feminismo têm pontos em comum?

Outro ponto muito discutido sobre essa temática é se o feminismo e o cristianismo compartilham semelhanças. Nesse aspecto, Agnes afirma que é complexo colocar os dois conceitos como semelhantes, uma vez que são separados por tempo, espaço e propostas divergentes. “Em vários momentos o feminismo vai se contrapor a religião cristã como estrutura, como sistema, porque é um sistema patriarcal, é um sistema de opressão”, explica.

Ainda assim, de acordo com a historiadora, é fato que “existem elementos do cristianismo que estão presentes no feminismo e em outros movimentos como a luta por equidade, a luta por igualdade, a luta por justiça social”. Ela relembra também que Jesus, não só ressignifica os direitos e deveres morais e sociais dos seres humanos, como confere as mulheres o status de dignidade: “ele repensa o lugar da mulher, convida as mulheres para participarem do seu ministério, as mulheres caminham com ele”, o que vai de encontro com algumas questões do feminismo.

Além disso, segundo a teóloga Ana Ester, enquanto o feminismo surge como um “movimento emancipatório de libertação do regime regulatório de gênero”, o cristianismo é um “movimento de libertação da criação”. Nesse sentido, entende-se libertação como “um imperativo ético de luta pela dignidade humana de todas as pessoas e de cuidado com a Casa Comum que nos abriga”, esclarece.

Os desafios do cristianismo feminista

Entre semelhanças e diferenças pode ser desafiador unir estes dois conceitos, tanto pela construção histórica do cristianismo, como por determinados posicionamentos feministas que vão em desencontro com a religiosidade. De acordo com Ana Ester, um dos principais desafios é “permitir que o feminismo desestabilize as certezas da fé cristã”, uma vez que o movimento feminista implica em questões que “esbarra nos limites da tradição”.

Ao encontro dessa afirmação, Agnes também ressalta que dentre os diversos desafios, “romper com a tradição” é o principal deles. No entanto, a historiadora também fala sobre a ausência de discussão em relação ao assunto, que “não é acessível pros bancos de igreja” e esclarece a maneira como o capitalismo pode impactar essa situação: “o feminismo é uma crítica ao capitalismo e o capitalismo é um dos pilares basilares do cristianismo. O cristianismo depende do capitalismo pra existir, então toda e qualquer crítica ao capitalismo, toda e qualquer crítica ao patriarcado, que é um outro basilar do cristianismo, vai ser rechaçado com violência e veemência”.

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Além disso, a forma como a igreja cristã se posiciona sobre o feminismo também gera impactos. Nesse ponto de vista, Ana Ester e Agnes explicam que ao falar de igreja é importante compreender que não se pode generalizar. Segundo a teóloga, por exemplo, enquanto “igrejas mais conservadoras e tradicionais têm mais dificuldade de abordar as questões a partir de um viés feminista, igrejas mais no espectro progressista do cristianismo tendem a reconhecer o feminismo como aliado do projeto libertador de Jesus”.

Contudo, ambas as pesquisadoras afirmam que não se pode negar as tensões que permeiam o assunto no campo religioso. “No geral, o que a gente vê nesse cristianismo hegemônico é um rechaçamento do feminismo e de todas as críticas que ele traz para o texto bíblico e para a nossa maneira de viver a religiosidade”, afirma Agnes, que esclarece por fim que esse movimento ocorre devido à visão equivocada de que o feminismo é uma forma de opressão do homem, o que novamente vai de encontro com a estrutura patriarcal da religião.

E como é possível viver essas duas realidades?

Se você é cristã e se preocupa com questões feministas, mas não sabe como lidar com essas duas realidades que parecem distintas, saiba que você não está sozinha. Segundo Agnes, existe uma narrativa religiosa de que o feminismo é contra todas as coisas pregadas pelo cristianismo, como se uma coisa fosse contrária a outra. “Essa é uma construção de silenciamento das mulheres, de não adesão de um movimento que de alguma forma está propondo uma equidade entre gêneros, respeito, tolerância”, ressalta.

Esse pensamento acaba corroborando para a ideia de que uma mulher não pode ser cristã e feminista, o que, de acordo com as pesquisadoras, não é verdade. “É preciso caminhar junto. Nem feminismo, nem cristianismo se constroem na individualidade. Ambos, enquanto movimento, requerem que estejamos dispostas a superar nossas diferenças, e mais, a celebrar nossas diferenças enquanto construímos uma comunidade solidária”, pontua Ana Ester.

A partir disso, Agnes explica sobre a importância dos estudos a respeito da teologia e do cristianismo: “estudem muito, leiam as mulheres. Tem muita mulher boa produzindo teologia, ouçam podcast, vejam documentários, vai buscar quem são as teólogas e teólogos”. E não para por aí. Para a historiadora, questionar algumas coisas é determinante para uma melhor compreensão em relação aos dois conceitos.

“Não comprem de cara todos os discursos que nos vendem, não sejam ingênuas nesse sentido, porque nos venderam um cristianismo neutro, como se a mensagem do nosso pastor não tivessem nenhum comprometimento ideológico, mas é mentira”, afirma a doutoranda em Ciências da Religião.

Por fim, ela pontua que o questionamento pode evocar medo e receios, uma vez que foi aprendido que é algo que não se deve fazer. No entanto, ela afirma: “o que eu tenho aprendido é que Jesus sempre nos encontra, sempre está caminhando conosco o caminho de Emaús, mesmo quando nós não percebemos. E esse caminho é um caminho que nos leva a uma espiritualidade cada vez mais viva, cada vez mais real e cada vez mais conectada com os problemas do nosso tempo”.

Psicóloga apaixonada por literatura e psicanálise. Acredita que as palavras, escritas ou faladas, têm o poder de transformar.