Sociedade

Atentas e fortes: o que significa ser uma mulher feminista em 2023?

Neste mês da mulher, celebremos nossas vitórias e preparemos o terreno para as lutas que ainda virão

Dicas de Mulher

Atualizado em 26.10.23

A primeira vez que ouvi falar sobre feminismo foi em 2006, no meu primeiro ano de faculdade. Eu tinha 19 anos. Antes disso, já me incomodava notar que o mundo era um lugar muito diferente para homens e mulheres – achava injusto, mas eu ainda não tinha uma palavra para falar sobre isso. Foi quando minha professora de Literaturas em Língua Inglesa falou sobre o movimento feminista.

Ela estava apresentando algumas escritoras atuantes entre o final do século XIX e início do XX, período em que era bastante difícil mulheres escreverem e terem seus textos publicados. Aliás, se poucas eram alfabetizadas, como poderiam escrever? A educação feminina, na grande maioria dos casos, era voltada para questões muito práticas do gerenciamento doméstico: seu foco deveria estar na casa, no marido e nos filhos.

Virginia Woolf, uma grande escritora inglesa desse período, chegou a publicar um livro de ensaios sobre o tema, chamado ‘A Room of One’s Own’, ou ‘Um teto todo seu’, em português (eu o indiquei como um dos 15 livros que toda mulher deveria ler para se empoderar). Uma de suas afirmações mais clássicas é a de que “uma mulher deve ter dinheiro e um teto todo seu, um espaço próprio, se quiser escrever ficção” – ou seja, exatamente o mesmo que os homens que escreviam já tinham, mas que era negado ou, no mínimo, muito dificultado às mulheres.

Hoje, além de ser uma escritora com livros publicados, escrevo para um site que tem somente mulheres como redatoras, e cuja grande maioria do público leitor é formado por mulheres. Quando penso nessa linha do tempo, acho bastante simbólico. E bonito.

Desde quando conheci o feminismo, há 17 anos, minha forma de entendê-lo mudou muito. E o feminismo em si – ou feminismos, se preferir – também mudou. Ele já foi usado comercialmente. Escandalizou pessoas, foi ridicularizado, questionado e, depois, resgatado. Ser uma feminista em 2023 é bem diferente de ser uma feminista nos primeiros anos do século XXI (ou lá na sua origem).

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Mais do que isso, ser uma mulher em 2023 é muito diferente de ser uma mulher na década de 00 (ali, entre 2001 e 2010). É bem curioso para mim, como mulher 35+, observar meninas de 20 ou 22 anos existindo e lidando com tanta suavidade com assuntos que, quando eu tinha essa idade, ainda eram espinhosos. Nossa relação com nosso corpo e nossa imagem mudou. O modo como lidamos com nossa sexualidade também. Já é um pouco mais leve para essa geração assumir orientações sexuais e identidades de gênero diferentes das “tradicionais” (ou, em termos mais específicos, que fujam da heterocisnormatividade). Também há mais espaço para experimentar formatos diferentes de relacionamento, como a não monogamia, o relacionamento aberto e o poliamor. E há espaço para debates que são mais periféricos ou colaterais à questão de gênero em si, mas que nem por isso são menos importantes.

É bonito notar que nossa luta e a luta das que vieram antes de nós têm esse efeito no mundo. Minha impressão é a de que, nesta quarta onda feminista, iniciada em torno de 2011 ou 2012, temos um movimento que se torna cada vez mais interseccional, com uma maior consciência de que a questão de gênero dialoga com diversas outras. A maior parte dos feminismos atuais é antirracista, antietarista, anticapacitista, inclui debates político-econômicos, debates mais relacionados à forma como vemos as nossas relações e a nós mesmas e debates importantes para a comunidade LGBTQIA+, além de muito frequentemente acolher mulheres trans e travestis. Tudo isso, executado na prática e pulverizado pela potência que é a internet, tem esse efeito de mudar a sociedade de um modo que eu vejo como muito positivo – mesmo que nem sempre seja tão veloz quanto gostaríamos.

Dito isso, não significa que tudo esteja maravilhoso. Estupros e feminicídios ainda são uma dolorosa e muito frequente realidade no Brasil e no mundo. Mulheres seguem sofrendo assédios e abusos, além de violência doméstica, psicológica e patrimonial, ainda há disparidade de gênero em certos campos profissionais e permanece em muitos lares a ideia de que a mulher é a responsável exclusiva pelo trabalho doméstico familiar, enquanto o homem, no máximo, a ajuda. Mulheres continuam sofrendo com a alienação parental de seus parceiros, muitas vezes tendo que atuar como mães solo. Mulheres – e, em especial, mulheres negras – seguem sendo as mais atingidas pela desvalorização do salário-mínimo, o antifeminismo continua ganhando força em certos espaços mais conservadores e nem sempre o diálogo entre feminismo e religião é tranquilo.

Há também, como tem sido discutida recentemente, a misoginia da “machosfera”, com seus “masculinistas” e “red pill”, que não me deixam mentir. Alguns homens, acostumados à histórica dominação masculina, seguem praticando o ódio às mulheres de modo virtual e físico, uma espécie de reação desesperada à maior participação das mulheres nos mais variados espaços sociais.

Isso, aliás, não é algo atual. Essa reação masculina à conquista de direitos por parte das mulheres já vem de antes da década de 1970, e ganhou força com a ascensão da direita, em 2013, e com a maior globalização da internet¹. Além de contrários aos nossos direitos, esses homens também têm em comum uma aversão ao feminino, que varia entre quererem distância de mulheres a quererem apenas nos usar de modo sexual.

Por mais absurdo que isso pareça, é um perigo que precisa ser discutido em sociedade, para que as violências que grupos como esse podem potencialmente causar sejam prevenidas. É importante que nossa legislação entenda a misoginia como crime, assim como o racismo, por exemplo.

Também é muito importante educar a geração atual e as próximas no respeito e na igualdade. Detalhe: sem esquecer que a educação dos meninos também precisa receber atenção especial. Não basta que as meninas sejam educadas a se defender da opressão, precisamos ensinar os meninos a não oprimir, a respeitar o corpo, a decisão e o espaço das meninas. Talvez assim, quem sabe, tenhamos uma sociedade em que nós, mulheres, não precisemos nos manter constantemente tão alertas.

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Neste mês da mulher, eu me propus o desafio de pensar o que é ser uma mulher em 2023. Acho que é um bom exercício a se fazer. O que tenho notado é que, sim, o mundo tem melhorado para nós, não há dúvidas. Mas há muito a ser feito. Nosso mundo ainda é “mais melhor” (sic) para algumas mulheres do que para outras e, como defendeu a escritora Audre Lorde, “eu não sou livre enquanto alguma mulher não o for, mesmo quando as correntes dela forem muito diferentes das minhas”.

Aliás, por mais que seja fundamental comemorar todas as nossas conquistas até aqui, não podemos esquecer do que disse Simone de Beauvoir: “basta uma crise política, econômica e religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados”. É um fato. A igualdade, a equidade e a justiça não são características “dadas”: são construções. Precisamos, enquanto sociedade, trabalhar dia a dia no estabelecimento dessas virtudes.

Honro muito os esforços das mulheres que vieram antes de mim ao usufruir do que elas já conquistaram. Sei que ainda vamos ter que levantar nossa voz e afirmar com convicção nossas crenças muitas vezes, isso vai se repetir e se repetir. Às vezes é doloroso. Cansa. Mas eu acho muito recompensador saber que as próximas gerações de mulheres estarão cada vez mais próximas da sociedade justa e igualitária que sempre desejamos para nós no decorrer de nossas lutas.

Idealista? Talvez. É o meu jeitinho.

Um potente dia da mulher para todas nós. E que no ano que vem, ao olharmos para o que percorremos desde o dia de hoje, encontremos mais avanços do que tropeços e recuos. Vamos juntas!

Escritora, autora de "A mulher que ri", "Efêmeras" e "Do Silêncio". Apaixonada por Clarice Lispector, clubes de leitura e pessoas. Gosta de listar coisas de três em três.