COLUNA

A obsolescência programada dos nossos sentimentos

Thays Pretti

Será que há um prazo limite para o surgimento de uma paixão?

Você certamente conhece a premissa: dois jovens se apaixonam, há uma tímida aproximação que pode ser mais ou menos demorada, alguns percalços e ajustes pelo caminho e, enfim, nasce um romance. Final feliz.

O conflito pode ser de vários tipos: timidez de um ou ambos os personagens, uma ação não muito legal de algum deles, um pode ser o popular do grupo enquanto o outro é o esquisito etc. É batido, mas às vezes encontramos histórias em que a dificuldade para o casal se estabelece a partir de um conflito de classes sociais. E, ainda que recorrente desde o Romeu e Julieta de Shakespeare, há quem apele para o conflito entre famílias como nó de uma narrativa focada no amor romântico entre dois personagens.

Em alguns casos um pouco mais inovadores, os jovens são pessoas do mesmo sexo, que podem ou não enfrentar mais desafios por essa configuração de relacionamento. Em raras obras, há outros tipos de personagens e conflitos possíveis atrapalhando a relação. Mas, sabe o que eu dificilmente vejo em obras com esse foco? Pessoas em torno dos 60 anos, ou mais. É quase como se nossa cultura colocasse um prazo para a paixão: depois de tal faixa etária, já não seria possível conhecer alguém, iniciar um relacionamento, sentir aquele friozinho na barriga que todos nós conhecemos e é tão gostoso.

Será que, de fato, há uma idade na qual nossa capacidade de se apaixonar deixa de existir? É possível que nossos sentimentos se tornem obsoletos em algum momento da nossa vida? Será que há, já de saída, um prazo?

Esses foram alguns dos questionamentos que o quadrinho ‘A obsolescência programada dos nossos sentimentos’ me trouxe – inclusive a partir desse título, belíssimo, por sinal.

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A história abre nos apresentando Mediterrânea Solenza, uma mulher de 62 anos que, após passar 9 meses cuidando de sua mãe no hospital, tem que lidar com o vazio de propósito deixado por sua morte. Na sequência, conhecemos Ulisses, um homem de 59 anos, compulsoriamente aposentado pela empresa de transportes para a qual trabalhava devido a um corte de gastos. Ambos se veem diante de uma brusca mudança em suas rotinas, encaram seus processos de envelhecimento e se perguntam sobre o rumo de suas vidas dali para frente. Há também certas questões físicas, que giram em torno da relação de ambos com o envelhecimento de seus corpos – o que é intensificado pela percepção de como os outros ao redor lidam com a presença de ambos em certos espaços.

Os dois personagens se conhecem na sala de espera de um consultório médico e, a partir de então, se aproximam e apaixonam. Basta de spoilers por aqui: o restante da história fica para quem ler o quadrinho. O importante é que, contrariando o que tradicionalmente encontramos em histórias de amor, Mediterrânea e Ulisses, personagens de 60 anos, amam. E amam não aquelas pessoas com quem talvez tenham optado, lá na juventude, iniciar a vida. Em vez disso, é um amor inaugural, uma nova paixão. Aos 60.

É claro que nós não nos apaixonamos do mesmo modo em todos os momentos da nossa vida. As paixões que temos entre a adolescência e os 20 e poucos anos são muito mais avassaladoras e desesperadas do que as paixões que temos a partir dos 30, por exemplo. De modo geral, quanto mais o tempo passa, mais entendemos que os amores podem perdurar ou não – e que isso nem sempre passa pelo quanto gostamos de alguém ou pelo fato de acharmos (jovens e sonhadores) que aquele seria um amor para a vida toda. Nossas vidas encostam e desencostam da vida de muitas pessoas no decorrer de nossos anos. Há prioridades que se fazem mais relevantes, novas buscas, sentimentos que crescem ou diminuem. Amadurecer também é passar a ver beleza nisso (mesmo que às vezes soframos horrores pelo fim de uma ou outra relação).

Se estamos tão disponíveis para o amor aos 20 e aos 30, por que não poderíamos estar aos 40, 50, 60, 70…? Por mais que o tempo passe, nós continuamos as mesmas pessoas. Mais maduros, mais cansados, mais tranquilos. Mas igualmente humanos, passíveis de amar e ser amados – ou, ainda, ansiosos por amar e ser amados.

Isso é muito bem retratado no quadrinho, que traz diversas páginas ricamente ilustradas com momentos de afeto entre os dois personagens, que experimentam o amor e o sexo com muita sinceridade e entrega. Não é de se estranhar que, ao acompanhar a história, acabemos tendo a sensação de que é apenas ali, naquela idade, com aquela maturidade, que a intimidade com alguém é plenamente possível de ser alcançada.

Trazer isso para dentro de narrativas de ficção, além de servir como registro de que é algo que realmente ocorre no mundo real, também é uma forma de transmitir uma mensagem, que diz: “ei, está tudo bem você se permitir sentir o que está sentindo, independentemente da sua idade”. Nunca é tarde para ser sincera(o) com sua própria verdade.

Assim, se o título deste quadrinho for uma provocação para pensarmos sobre afetos, acho que ele cumpre sua tarefa com perfeição, especialmente por nos revelar em suas páginas que nossos sentimentos, na verdade, não estão sujeitos a uma obsolescência programada. Não somos celulares ou aparelhos eletrônicos: nós somos pessoas. E, para as pessoas, ainda que socialmente concordemos com o contrário, o tempo não existe. O que existe é o que somos e sentimos. Durante todo o tempo que venhamos a viver.

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‘A obsolescência programada dos nossos sentimentos’ é um quadrinho europeu, escrito pelo belga Zidrou e com ilustrações da artista holandesa Aimée de Jongh. Tem 144 páginas lindamente ilustradas e foi publicado no Brasil em 2022, pela Pipoca & Nanquim.

A Obsolescência Programada dos Nossos Sentimentos

A Obsolescência Programada dos Nossos Sentimentos combina a sensibilidade de Zidrou e a delicadeza de Aimée de Jongh para oferecer ao leitor uma singela reflexão sobre a idade e o amor em uma encantadora experiência de leitura, aclamada mundialmente. A edição da Pipoca & Nanquim tem capa dura com acabamento fosco e 148 páginas coloridas em papel couché de alta gramatura.

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Dicas de Mulher.

Escritora, autora de "A mulher que ri", "Efêmeras" e "Do Silêncio". Apaixonada por Clarice Lispector, clubes de leitura e pessoas. Gosta de listar coisas de três em três.