COLUNA

Os meninos nas árvores

Dicas de Mulher

Brincar colabora com a ampliação do nosso repertório cultural, mas também pode nos expor desde cedo a traços ruins de nossa sociedade

Li, recentemente, o livro O barão nas árvores (1957), no qual Italo Calvino conta a história de Cosme Chuvasco de Rondó que, em 15 de junho de 1767, revolta-se contra seus pais e sobe às árvores, para não ter que conviver na mesma casa. Das árvores, ele só desceu quando morreu. A história relatada neste livro acionou um gatilho na memória. Fui direto para minha infância e revi diversos e marcantes momentos nos quais eu subi em árvores. Episódios, na maior parte das vezes, engraçados, mesmo quando envolveram algum risco à minha segurança e de minhas irmãs.

Uma vez, eu, minhas irmãs e alguns amigos, fomos a uma propriedade rural, próxima ao nosso bairro, e subimos num pé para “pegar” manga. Já em cima da mangueira, o dono nos viu e começou uma gritaria; aos berros, dizia que ia atirar em nós. Corremos muito. Sequer vimos se ele estava realmente armado ou se era um blefe. Era comum os proprietários de sítios ou chácaras atirarem nos invasores com espingarda de pressão, ou com sal grosso, somente para assustá-los. O sal era usado porque não era letal, mas ardia horrores. Nunca fui alvo desses tiros.

Outra vez, a façanha ocorreu na escola na qual eu estudava. Havia uma casa, no grande pátio da escola, na qual morava o zelador. Essa propriedade incluía algumas árvores frutíferas. Em certa ocasião, pulamos a cerca baixa que a separava do restante do pátio. O objetivo era alcançar um pé de mexerica. A água na boca era um estímulo à transgressão. Porém, alguém avisou o zelador que, também aos berros, nos expulsou. Na correria para pular a cerca, caí e quebrei o braço. Fui parar no hospital, “ganhei” suspensão de uma semana da escola e muitas broncas dos meus pais.

Noutra oportunidade, subi numa árvore no pomar da nossa casa e minha irmã ficou embaixo para amarrar, numa corda, alguns apetrechos que eu puxaria lá de cima. Quando esse trabalho de levar coisas para cima terminasse, minha irmã subiria e brincaríamos “de casinha” nos galhos. Na hora de puxar a corda, desequilibrei e caí. Os ferimentos na barriga me levaram para o hospital e, novamente, para as broncas de nossos pais.

Na maioria das vezes, subíamos nas árvores em busca de frutas. Mas também para balançarmos nos galhos, nos esconder ou, simplesmente, para fantasiar aventuras. Minha irmã caçula era muito sapeca e, constantemente, contrariava nossos pais, assim como o Cosme, do livro citado acima. Para não apanhar, ou para não ser castigada, ela subia nas árvores. Chegava a ficar uma tarde inteira lá em cima. Meus pais não conseguiam pegá-la, pois ela subia nos galhos mais altos e nos mais finos, já que era bem leve.

Publicidade

Enfim, foram vários episódios envolvendo “subir nas árvores” e, como já disse, quase todos foram divertidos e deixaram boas recordações. Mas, quero destacar uma ocorrência marcada por uma extrema violência, um tipo de violência muito simbólica. Mas nessa situação, não fui eu que subi na árvore.

A ocorrência violenta foi impactante e deixou uma cicatriz na minha vida. Vou contar. Eu já disse, em outras colunas, que meus pais tiveram quatro filhas. Na mesma época em que nascemos, o irmão do meu pai, meu tio, teve quatro filhos. Éramos vizinhos. Quatro meninas numa casa, quatro meninos na casa ao lado, separados por uma cerca de balaústre. Não brincávamos muito juntos, porque eles não aceitavam que participássemos das brincadeiras deles, ditas “de meninos”.

Certa vez, eu e minhas irmãs estávamos brincando no nosso quintal, próximas à cerca. Era comum brincarmos de casinha, passa anel ou balança caixão – brincadeiras consideradas apenas como “coisas de meninas”. Enquanto brincávamos, sentadas no chão, meus primos subiram numa árvore que ficava ao lado da cerca e, após instalados no alto, sem que tivéssemos ideia do que iam fazer, dois deles fizeram xixi na gente. Isso mesmo! Urinaram nas nossas cabeças.

Assustadas, sem compreender muito bem o que estava acontecendo, gritamos muito e chamamos a minha mãe. Quando ela se deu conta do que tinha ocorrido, ficou furiosa, xingou os primos, mandou eles descerem da árvore e chamou a mãe deles. A situação ficou muito tensa. As duas famílias brigaram e nos afastamos. Talvez essa tenha sido a primeira vez que senti, literalmente, na pele, o quanto é difícil, para nós mulheres, viver num mundo no qual predomina uma insana mistura de machismo, misoginia e sexismo.

Na época, não entendi a dimensão do ocorrido. Só muito tempo depois, já adulta, é que compreendi que aqueles primos, crianças como eu e minhas irmãs, já estavam contaminados por essa cultura. Eles se sentiam superiores, com a liberdade e o direito de urinar em nós, um ato, com requinte de crueldade, relacionado às relações de poder e à desigualdade de gênero.

No livro O barão nas árvores, Cosme, depois que já estava a algum tempo morando no alto delas, viu seu pai chegando para conversar. Ele queria convencer o filho a descer da árvore e retomar sua vida. Porém, Cosme se negou. O pai disse que ele era rebelde e o ameaçou, dizendo que, se continuasse a desobedecer, a viagem dele podia não ter retorno. Cosme respondeu: “de cima das árvores mijo mais longe”, tentando encerrar a conversa. Seu pai, o barão, disse: “cuidado filho, há quem possa mijar sobre todos nós”. Em seguida, uma forte chuva começou a cair.

Essa passagem do livro e outras histórias que já ouvi sobre meninos que sobem nas árvores e mijam nas meninas, revelam atos repetitivos de desqualificação e violência praticados contra meninas e mulheres. O barão pai reagiu à frase dita pelo filho, invocando um castigo divino, como se a chuva fosse o xixi de Deus caindo sobre a cabeça de todos. Nós, hoje, sabemos que é de outro tipo de justiça que precisamos para que a desigualdade de gênero seja coisa do passado.

Publicidade

Além disso, é necessário que tenhamos em mente que brincadeiras não têm gênero. Meninos e meninas podem brincar daquilo que mais lhes agradar. E mais, brincar pode colaborar com a ampliação do nosso repertório cultural, nos levar a experimentar papéis, situações, ações e movimentos dos mais diversos. É preciso que a família e a escola promovam uma educação antimachista. Assim, desde a infância, será possível criar uma sociedade mais igualitária, segura e inclusiva, na qual poderemos “matar os preconceitos que causam mortes todos os dias”.

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Dicas de Mulher.

Doutora em História, mestra em Educação e graduada em Pedagogia. Professora aposentada pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Mantém-se na luta cotidiana pela educação de qualidade, democrática e para todos.