COLUNA

A dor e a esperança fazem parte do vocabulário de uma mulher que ama futebol

Dicas de Mulher

Todas as emoções proporcionadas pelo esporte são diferentes quando falamos de futebol feminino.

Já perdi a conta de quantas vezes chorei por causa de futebol. Algumas de alegria, muitas de tristeza. E não tenho dúvida de que a eliminação precoce da Seleção Brasileira da Copa do Mundo Feminina não foi a última. Mas essas lágrimas foram diferentes de muitas outras que já derramei depois de uma derrota, porque não caíram somente pelo resultado em campo.

Sei muito bem o que a Marta quis dizer quando afirmou que não entendia que poderia chegar à seleção e ser uma referência, porque o futebol feminino não era mostrado na TV. Tive muitos ídolos profissionais na infância, todos homens.

Quando eu tinha 10 anos, andava pelas ruas com uma bola embaixo do braço, sonhando em ser goleira, por causa de Ricardo, de Portugal, que defendeu três pênaltis contra a Inglaterra na Copa de 2006. Nos jogos com a criançada pela rua, ia sempre no gol, e toda vez que defendia uma bola gritava, como uma narração do ato: “Ricardoooo”. Mesmo sendo somente uma criança sonhadora, ouvia coisas que me machucavam. Eu não podia gostar de futebol porque era muito feio para uma garota, era coisa de menino.

Mas tudo mudou quando descobri que minha mãe jogava futebol. Esse nunca foi um assunto comentado em casa, porque meu pai proibiu que minha mãe jogasse quando se casaram. Achei uma foto dela com colegas de equipe, escondida em uma gaveta e só então entendi que, talvez, eu não fosse tão esquisita assim. Se minha mãe podia, eu também podia.

Um dia, ela resolveu que iria jogar, mesmo meu pai não gostando. E o mundo inteiro se transformou para mim quando vi minha mãe com uma bola nos pés. Encontrei, tão pertinho de mim, a grande ídolo do futebol feminino que eu não via na TV. Tudo que eu sentia por futebol, ficou ainda mais forte, como uma fagulha que foi se espalhando e, de repente, virou um incêndio incontrolável. Desisti até de ser goleira e passei a jogar com a bola nos pés.

Publicidade

A partir daí eu e o futebol nos confundíamos, um fazendo parte do outro. E ficou muito difícil distinguir quem eu era sem meu esporte favorito. Mas com esse grande amor, também vieram muitos momentos de bastante sofrimento. Aos 12 anos, entrei para o time de futsal da escola e fiquei até os 17. Nesse período, chorei pelas derrotas, pela falta de apoio e pela dor física.

Mas muita coisa legal passou a acontecer também: começamos a participar de várias competições (embora a gente precisasse fazer vaquinhas para comprar nosso uniforme ou emprestar uniformes masculinos), contamos com um professor de educação física, que dirigia 12 quilômetros, três vezes por semana para chegar até o distrito onde morávamos e nos ajudar com os treinos. Meu pai, que nunca quis saber de futebol, acabou se rendendo, parou de reclamar e ainda ia assistir todos os jogos. E o mais importante: comecei a jogar com a minha mãe. Era até um pouco intimidador estar ali jogando ao lado dela, mas sentia um orgulho gigante também.

Contudo, algumas situações que, a princípio pareciam legais, não foram tanto assim. Em uma das competições, nossa equipe começou a vencer vários jogos, inclusive de equipes favoritas e chegamos à final. Um jornalista apareceu para fazer uma reportagem e ficamos muito empolgadas, algumas meninas tinham o sonho de jogar profissionalmente e essa poderia ser uma forma de dar visibilidade a elas. Mas o resultado do texto foi dizer que estávamos chamando atenção pela beleza, que éramos charmosas e vaidosas e que isso não atrapalhava em quadra. O time deu algumas risadas do texto, mas acredito que a abordagem foi decepcionante para todo mundo.

Logo após esse campeonato, o último que joguei, recebi uma notícia péssima do meu ortopedista. Eu teria que parar de jogar, pois tinha um problema no joelho e poderia parar de andar em breve se continuasse me esforçando assim. “Jogar bola é muito bruto, faça algo mais feminino, como dançar balé”, foram as palavras dele, das quais nunca me esqueci. Cheguei em casa e chorei, chorei muito. De tristeza, mas também de raiva. E, claro, troquei de médico.

Eu achei que essa seria a pior coisa que poderia ouvir sobre futebol, mas não foi. Meu novo plano, então, era fazer jornalismo e ser jornalista esportiva, para continuar perto do esporte. Mas a primeira vez que me candidatei para uma vaga na área, disseram que meu currículo era muito bom, mas que “um homem para cobrir esporte combina mais”. Não tive reação, sinceramente. E até hoje me arrependo de não ter dito nada. Mas acho que já estava tão acostumada com essa forma de “pancada” no meio, que entendi como normal. Ainda assim, achei que valia a pena continuar. E valeu.

Fiz meu trabalho de conclusão de curso (que virou um livro-reportagem) sobre torcidas de futebol, fiz especialização e mestrado sobre o assunto também. Publiquei artigos em revistas científicas, livros e apresentei trabalhos em diversos eventos. E, bom, é por isso que você está me lendo aqui.

Eu não sou do time dos que acham que dor gera crescimento, adoraria estar aqui sem ter passado por algumas situações desagradáveis. Mas se eu tivesse desistido do futebol (e talvez se minha mãe tivesse desistido do futebol) eu não seria quem eu sou. Como disse Luiz Antônio Simas, o futebol me fez perceber o desconforto, as contradições, o horror e a beleza de nossa experiência. Então, não me arrependo de nada.

Publicidade

Por tudo isso, essa eliminação do Brasil na Copa do Mundo feminina me dói tanto. Não é só pelo futebol brasileiro. É por causa da maior jogadora da história, que jogou sua última Copa do Mundo e não venceu, porque até aqui, todo incentivo teve que ser buscado com unhas e dentes. É por causa de todas essas mulheres que lutaram tanto. Que encararam os machistas. Que treinaram duro. Que muitas vezes estudavam e/ou trabalhavam enquanto tentavam ser atletas, em três turnos de exaustão. Que me inspiraram, mesmo quando eu não podia mais jogar. É por causa da minha mãe. É por tudo que eu vivi.

Eu sei que muita gente vai entender essa dor. Mas, no meu vocabulário de mulher que ama futebol, também existe a palavra esperança. Eu acredito que o futebol de mulheres no Brasil não vai parar de crescer. Eu acredito que cada vez mais gente vai passar a apoiar. Eu acredito que temos condições de consertar os erros e estar mais fortes para as próximas competições. Não deixem de apoiar o futebol feminino por causa dessa derrota, esse incentivo contínuo é fundamental, para que no futuro, as nossas lágrimas sejam de alegria e que o caminho seja bem mais simples para as meninas que, hoje, sonham em chegar à seleção.

Hilário Franco Júnior escreveu que se o futebol, de um lado, é expressão do absurdo, de outro, é ensaio para se lutar contra esse absurdo. Por isso, o futebol feminino também é espaço de luta e, com o perdão do clichê, é muito mais que futebol. É onde a gente lida com as dores e tenta transformar quase tudo em esperança. É onde se entende o amor, a vida e do que as mulheres são capazes.

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Dicas de Mulher.

Jornalista, professora, especialista em Jornalismo Esportivo e mestre em Sociedade e Desenvolvimento pesquisando futebol e torcidas.