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Da proibição aos recordes de público: o futebol feminino cada vez mais forte

Dicas de Mulher

Depois de anos de luta, proibições e preconceitos, o futebol praticado por mulheres está se consolidando, mas ainda há muito que avançar

Dizer que a história do futebol feminino é uma história de luta e resistência não é exagero. Por isso, é quase impossível falar sobre a modalidade apenas tratando de gols, vitórias e derrotas. Conhecer o futebol de mulheres é entender as lutas de quase todas nós, no esporte e na vida.

Marta, por exemplo, a maior jogadora da história, eleita seis vezes a melhor do mundo, precisou encarar olhares estranhos e comentários maldosos, foi proibida de disputar campeonatos com garotos e teve que sair de casa sozinha, aos 14 anos, para tentar jogar no Rio de Janeiro. Ainda encarou cortes na equipe, baixos salários e precisou de muita coragem para ir tão jovem para um time europeu.

Mesmo com uma carreira consolidada, a rainha do futebol recusou várias propostas de patrocinadoras esportivas por entender que os valores oferecidos não eram justos. Esta Copa do Mundo é o terceiro grande evento em que a atleta não utiliza chuteiras com a estampa de marcas.

Mesmo em lugares onde o futebol feminino é mais desenvolvido, como Europa e Estados Unidos, as desigualdades são notáveis. Um levantamento da revista France Football, em 2019, mostrou que Lionel Messi recebia um salário 325 vezes maior que a norueguesa Ada Hegerberg, jogadora que, na ocasião, recebia o maior salário do futebol feminino. Ela ganhava menos, inclusive, que jogadores da Série A do Campeonato Brasileiro.

Nos Estados Unidos, a seleção masculina é quase irrelevante no cenário do futebol mundial, e enquanto a feminina é quatro vezes campeã do mundo e tem quatro medalhas de ouro nas Olímpiadas, as mulheres precisaram travar uma batalha judicial para receber o mesmo salário e condições de trabalho dos homens. No Brasil, as desigualdades não foram os únicos empecilhos para que as mulheres praticassem futebol. O esporte foi proibido por lei durante quase 40 anos.

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Período de proibição

O Decreto-lei 3.199, que instituiu o Conselho Nacional de Desportos em abril de 1941, trazia no artigo 54 que “às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país”. Conforme apontam as pesquisadoras Carolina Moraes e Aira Bonfim, considerava-se que cabia à mulher “o espaço doméstico da dona de casa obediente, delicada e dócil”, assim, o futebol era considerado incompatível com as características que acreditavam serem indispensáveis para o sexo feminino.

Isso não foi o suficiente para impedir que as mulheres praticassem o esporte, claro. Mesmo de forma clandestina, sem qualquer respaldo ou apoio e correndo o risco de irritar as autoridades, muitas continuaram jogando. No entanto, há poucos registros. Além disso, a resistência à proibição não foi o bastante para que a modalidade pudesse se desenvolver como deveria.

O fim da proibição veio 38 anos depois, em 1979, e a regulamentação somente em 1983.

Depois da regulamentação

Com isso, foi possível criar campeonatos, utilizar estádios, ensinar nas escolas de maneira oficial e, também, montar equipes. O Esporte Clube Radar (Rio de Janeiro) e o Saad Esporte Clube (São Paulo) estão entre os clubes pioneiros.

Em 1988, a Fifa realizou uma “Copa do Mundo experimental”, na China, da qual a seleção brasileira participou. Contudo, as atletas não tinham sequer uniforme próprio, e precisaram jogar com roupas masculinas. A primeira Copa de verdade, veio somente em 1991, 61 anos depois do primeiro Mundial masculino. O Brasil estava presente mais uma vez, mas ainda de maneira muito amadora.

Isso mostra que, mesmo com a regulamentação, as dificuldades culturais e materiais não acabaram. E outros absurdos ainda precisaram ser enfrentados pelas mulheres que decidiam seguir com a prática. Como conta a pesquisadora Silvana Goellner, o campeonato paulista feminino, em 2001, exigia que as atletas precisavam se ater a elementos estéticos para jogar. Por exemplo, cabelos raspados eram proibidos, pois se buscava um futebol “bonito” e com “feminilidade”. Além disso, mulheres com mais de 23 eram barradas.

Sissi, considerada a maior jogadora brasileira antes de Marta, precisou encarar esses tabus de aparência. Por conta do cabelo raspado (isso para homenagear uma criança com câncer), ela recebeu ataques, xingamentos e até foi impedida de participar de um campeonato na época.

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Mas quem acha que isso ficou lá no início dos anos 2000, se engana. Em 2015, o coordenador de futebol feminino da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) declarou a um jornal canadense que a esperança para que as desigualdades diminuíssem estava no estilo das jogadoras, que “estavam ficando mais bonitas, usando maquiagem” e, como antes as mulheres usavam uniforme masculino, “faltava elegância e feminilidade”. Além disso, não é raro ver comentários machistas e preconceituosos sobre o tema nas redes sociais.

As dificuldades continuam, mas…

Apesar de tudo isso, muitos avanços aconteceram nos últimos tempos, principalmente depois da Copa do Mundo de 2019. O último Mundial teve a audiência de mais de 1 bilhão de pessoas ao redor do mundo e foi o mais visto de todos os tempos no futebol feminino.

No Brasil, o campeonato nacional passou a ser transmitido na TV aberta, os jogos da seleção garantiram ótimos resultados de audiência e em 2020 veio algo histórico para o futebol do país: depois de muita reivindicação, a CBF igualou salários e premiações para as seleções feminina e masculina.

Nos estádios, o interesse também começou a crescer. Em 2022, mais de 41 mil torcedores estiveram presentes no estádio para ver a final do Campeonato Brasileiro entre Corinthians e Internacional, recorde de público no Brasil (e na América do Sul), e representou uma renda de mais de R$900 mil.

Para a Copa do Mundo 2023, a Fifa já prevê recorde de público. A entidade anunciou a venda de 1,3 milhão de ingressos e espera cerca de 2 bilhões de espectadores ao redor do mundo. Carolina Moraes e Aira Bonfim consideram que a internet e as redes sociais contribuíram para que ocorressem atos e campanhas contra o machismo nos últimos anos, dando espaço também para o futebol praticado por mulheres.

Jogadoras importantes na história

Para que os avanços continuem acontecendo, é preciso cuidar do presente e olhar para o futuro, mas sem esquecer do passado.

Temos excelentes jovens jogadoras iniciando a caminhada na seleção como Adriana, Ary Borges, Gabi Nunes, Lauren, Duda Sampaio, Kerolin, entre outras. Além de Marta e Tamires, experientes e vitoriosas. Nos últimos anos, pudemos acompanhar também Formiga e Cristiane, dois nomes inevitáveis quando falamos de seleção brasileira. Mas, para chegarmos até aqui, muitas outras mulheres enfrentaram o machismo, a desigualdade, o preconceito e a falta de incentivo e seguiram em frente.

Antes do amistoso contra o Chile, último jogo antes de embarcar para a Copa do Mundo, as titulares entraram em campo acompanhadas de ex-jogadoras, para homenagear quem ajudou a desenvolver a modalidade. No gramado, foi levada a faixa: “Elas jogaram por nós, para jogarmos pelas que virão. Honrar nosso legado não tem preço”. Entre as 11 ex-atletas estavam: Marisa Pires Nogueira, Sandra Cristina Paiva Duarte, Maria Lúcia da Silva Lima (Fia), Marilza Martins da Silva (Pelezinha), Leda Maria Cozer Abreu, Solange Santos Bastos, Flordelis Santos Oliveira, Magali Aparecida Fernandes, Lucilene de Souza Marinho (Cebola), Monaliza de Souza Vieira Corrêa e Haslane Marques Santos (Nina).

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Não podemos esquecer, além de Sissi, já citada anteriormente, também de Kátia Cilene, uma das maiores atacantes do Brasil na década de 90 e que participou de várias competições pela seleção; Pretinha, que esteve em quatro Copas do Mundo e quatro Olimpíadas; Tânia Maranhão, que também disputou o mesmo número de competições que Pretinha pela seleção; Michael Jackson, uma das grandes pioneiras da seleção feminina, que integrou o time desde a década de 1980; Roseli, atacante nas décadas de 80 e 90 e que foi proibida pela família de jogar futebol, chegando a fugir de casa para ir atrás do sonho; entre tantas outras.

Para saber mais

Existem diversos materiais para se aprofundar no assunto, conhecer mais de perto a história do futebol feminino e acompanhar e apoiar essa luta, que é das jogadoras, mas também de todas nós, mulheres, por reconhecimento, igualdade e direitos. Veja alguns:

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Futebol feminista: ensaios

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  • Autoria: Lu Castro e Darcio Ricca
  • Ilustração: Rafaela Maya
  • Editora: LivrosdeFutebol
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One Life: Autobiografia

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  • Autoria: Megan Rapinoe
  • Editora: Pamela Dorman Books
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O dia em que as mulheres viraram a cabeça dos homens

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  • Autoria: René Rodrigues Simões
  • Editora: QualityMark
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Meninas nao choram, jogam futebol

Meninas nao choram, jogam futebol

  • Autoria: Jeanice França Alves
  • Ilustração: Gisele Maria Alves e Laís Helena Gonçalves
  • Editora: Clube de Autores
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Mulheres impedidas: a proibição do futebol feminino na imprensa de São Paulo – livro de Giovana Capucim e Silva analisa as publicações na imprensa sobre a proibição da modalidade, conectando aos contextos e examinando rupturas e permanências.

Do Ahú ao Foz: A história do campeonato paranaense feminino – neste livro, a jornalista Patrícia Zeni percorre o futebol de mulheres no Paraná, do início do campeonato até os dias atuais, e no qual é possível perceber que as dificuldades e os sonhos são compartilhados em diferentes regiões.

Futebol feminino no Brasil: entre festas, circos e subúrbios, uma história social (1915 – 1941) – da historiadora Aira Bonfim, também citada neste texto, o livro traz a história das mulheres que jogaram antes da proibição.

Futebol feminista: ensaios – o livro de Lu Castro e Darcio Ricca propõe mostrar que o futebol feminino, principalmente no Brasil, está conectado com as lutas feministas, às vezes, de forma militante assumida, às vezes, de forma simbólica.

One life – autobiografia de Megan Rapinoe, fala da trajetória da jogadora estadunidense que, inclusive, joga sua última Copa em 2023.

O dia em que as mulheres viraram a cabeça dos homens – Apesar de ser escrito por Renê Simões, ex-técnico da seleção feminina que recentemente deu péssimas declarações sobre violência doméstica, o livro nos ajuda a entender a situação da seleção brasileira quando ele chegou ao comando e mesmo com todas as dificuldades e preconceitos, subiu ao pódio nas Olimpíadas de Atenas.

Meninas não choram, jogam futebol – Importante que as nossas meninas e meninos saibam desde cedo que futebol também é coisa de mulher. Para isso, nada melhor que um livro infanto-juvenil para propagar essa ideia. Nessa obra de ficção de Jeanice França Alves, a protagonista encara tudo pelo amor ao esporte.

Offside – “Fora do jogo”, em português, este é um filme do diretor iraniano Jafar Panahi que nos ajuda a atender que, em muitos lugares do mundo, os desafios enfrentados pelas mulheres no esporte e na sociedade são muito maiores. No Irã elas foram proibidas de frequentar estádios por mais de 40 anos e o filme conta a história de moças que se vestiam com roupas masculinas para poder assistir aos jogos.

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Dicas de Mulher.

Jornalista, professora, especialista em Jornalismo Esportivo e mestre em Sociedade e Desenvolvimento pesquisando futebol e torcidas.