COLUNA

Torcida, substantivo feminino: elas estão cada vez mais presentes nas arquibancadas

Dicas de Mulher

Apesar de ainda ser um ambiente hostil, elas driblam as dificuldades e se unem para ocupar espaço.

O elemento mais importante do futebol, me atrevo a dizer, é a torcida. Durante a pandemia, com os jogos sem público, o silêncio era tão grande que parecia engolir o campo, os jogadores, os lances e os gols. Mas esse espaço cheio de significado, lazer, sociabilidade e festa, também tem muitos problemas. Um deles é a exclusão de mulheres.

Muitas meninas e mulheres não se reconhecem no esporte, porque desde cedo são desestimuladas de se aproximar do futebol por argumentos machistas. O “país do futebol”, para muitas, é um lugar ainda distante, mas esse cenário está se transformando e vemos arquibancadas com cada vez mais presença feminina.

O termo torcida é definido no dicionário como “conjunto de torcedores de um clube, de uma agremiação ou atleta”. Mas o que pouca gente sabe é que esse conceito nasceu com as mulheres. No início do século XX, moças torciam lenços, luvas ou parte das vestimentas, por conta do nervosismo ao verem as partidas de seus irmãos, pais, pretendentes ou maridos. Assim, viraram as torcedoras e a palavra entrou no vocabulário. Apesar do esporte ser bastante elitista na época, mostra a presença das mulheres nas arquibancadas há muito tempo.

Com o passar dos anos, os estádios foram se transformando em espaços bastante masculinizados e até mesmo violentos, afastando muitas pessoas. Algumas torcidas entoam cantos machistas e até mesmo proíbem as mulheres de tocar instrumentos, carregar faixas e viajar nas caravanas para assistir aos jogos em outras cidades. Sem contar casos de assédio que ocorrem nos estádios.

Isso acontece porque o futebol é marcado por discursos que pregam a masculinidade como próprias do esporte, excluindo quem não se encaixa nesse padrão. Não é raro ver discursos violentos contra mulheres no esporte. Na estreia da Copa do Mundo feminina, por exemplo, os responsáveis por uma transmissão na internet precisaram desativar os comentários do jogo, porque muitos homens acordaram às 4h da manhã para publicar comentários sobre a aparência das jogadoras, do estilo de jogo e do papel da mulher na sociedade, que, pare eles, não é no futebol, mas “lavando louça”.

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Isso não é suficiente, contudo, para fazer com que as mulheres desistam. Como em todos os outros âmbitos da sociedade, nós também estamos ocupando espaço no futebol.

Virando o jogo contra o machismo

Apesar de todas as dificuldades apontadas, a presença feminina nos estádios e o número de sócias torcedoras aos poucos vão aumentando. O Internacional de Porto Alegre, por exemplo, é um dos clubes com maior número de mulheres sócias. Em 2001, elas representavam apenas 2% do quadro social do clube, em 2011, eram 22% e, em 2015, 25%.

Esse crescimento se dá por diversas razões. Com o enfrentamento do machismo na sociedade, maior acolhimento das vítimas e com ações dos clubes voltadas às mulheres (para além da exploração da beleza e do corpo), o público feminino se sente mais confiante para estar nesses espaços. Além disso, a união vem sendo fundamental. Diversos grupos vão ao estádio juntas, para se sentirem mais protegidas, chegando a formar torcidas próprias.

Vários desses coletivos femininos, para além de questões esportivas, assumiram o compromisso de lutar contra a homofobia e a misoginia nos clubes, nos estádios, nas redes sociais e na sociedade como um todo. Em alguns casos, fazem até mesmo trabalhos educativos antes dos jogos, explicando a outras torcedoras o que é assédio e onde procurar ajuda. Entre esses grupos estão: Inter Feminista, Grupa (Atlético Mineiro), Mulheres Botafoguenses contra o Fascismo, Vascaínas Contra o Assédio, VerDonnas (Palmeiras), Coletivo Feminista Coritibano, Atleticaníssimas (Athletico Paranaense), Movimento Toda Poderosa Corinthiana, entre outros.

E quem acha que as reivindicações coletivas não fazem efeito, se engana. Essas mulheres já fizeram campanhas contra a contratação de jogadores e técnicos acusados e condenados por violência doméstica ou estupro, e em diversos casos foram ouvidas ou, no mínimo, conseguiram gerar um debate social sobre o tema. Já fizeram campanha para que as versões femininas das camisas dos clubes fossem comercializadas, entre diversas outras situações.

Também há projetos “solitários”, para incentivar as torcedoras. O perfil “Vá de Camisa”, por exemplo, é feito por uma mulher e traz a possibilidade do uso de camisas de futebol em qualquer situação.

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Além disso, em 2017, o Museu do Futebol recebeu um encontro nacional de torcedoras, com a participação de mais de 350 mulheres de 11 estados brasileiros para discutir a participação feminina nos estádios e estratégias para barrar o machismo.

Arquibancadas somente com mulheres e crianças

Em punições para alguns clubes, por causa de violência entre as torcidas, a Justiça decidiu que somente mulheres e crianças poderiam entrar no estádio. E elas não decepcionaram. Em uma partida em janeiro deste ano, o Coritiba contou com o apoio de 9 mil pessoas no estádio Couto Pereira. No mesmo mês, 32 mil mulheres e crianças acompanharam o Athletico Paranaense, na Arena. Em maio, 18 mil estiveram presentes na Ilha do Retiro para ver o Sport. A medida não é novidade e já foi aplicada em outros países. Em 2011, na Turquia, um estádio chegou a receber mais de 41 mil espectadoras.

Isso mostra que as mulheres estão muito interessadas em estar nas arquibancadas e que basta um ambiente em que se sintam respeitadas e seguras para que ocupem esse espaço. Vale destacar que o futebol feminino também proporcionou um ambiente muito mais acolhedor para que as mulheres pudessem torcer.

Projeto de lei quer ampliar presença feminina

Todas essas discussões também estão sendo travadas no âmbito político. Um Projeto de Lei apresentado pela deputada Sâmia Bomfim prevê o pagamento de meia-entrada em jogos de futebol para todas as mulheres em território nacional. O projeto foi pensado, inclusive, a partir de sugestões de uma participante do Movimento Toda Poderosa Corinthiana. Além das dificuldades pela violência e assédio, a deputada argumenta que mães solo, desempregadas ou pessoas submetidas à desigualdade salarial dificilmente têm oportunidade de ir ao estádio por questões financeiras.

Claro, diversos pontos do projeto ainda precisam de discussão mais aprofundada com todos os agentes envolvidos, e somente a proposta não é suficiente para resolver o problema. Mas é um passo nesse caminho e mostra que o assunto é importante, sim. Afinal, o lazer é um Direito Humano e a Constituição diz que deve ser incentivado pelo poder público como forma de promoção social, portanto, há um problema muito grande quando mulheres são privadas de espaços de lazer.

Por tudo isso, uma das questões primordiais nesse processo é discutir o preconceito e trazer discursos de inclusão e respeito às diferenças, além de não normalizar uma cultura machista e violenta no futebol. Dessa forma, as torcidas podem se tornar mais democráticas em diversos aspectos. Que o ato de torcer seja mais leve para todas nós e que nossa única preocupação ao pisar no estádio seja ver uma boa partida de futebol e apoiar nossa equipe.

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Dicas de Mulher.

Jornalista, professora, especialista em Jornalismo Esportivo e mestre em Sociedade e Desenvolvimento pesquisando futebol e torcidas.