COLUNA

Até quando mulheres e meninas vítimas de estupro serão constrangidas?

Casos recentes mostram que o controle, a violência e o ódio contra mulheres ainda imperam no Brasil

Atualizado em 03.10.22

Nos últimos dias, muitas foram as notícias que abalaram as mulheres e seus direitos, mostrando que ainda caminhamos a passos lentos quando o assunto é direitos reprodutivos e também amparo às vítimas de violência contra mulher.

Dia 20 de junho, a imprensa repercutiu o caso de uma menina de 11 anos, vitima de estupro em Santa Catarina. Ela foi levada pela família a um hospital público de Florianópolis para realizar o aborto legal. No entanto, a instituição se negou a fazer o procedimento, alegando que a menina estava com 22 semanas de gestação e que só realizaria com até 20 semanas. Então, o caso foi parar na justiça.

A juíza Joana Ribeiro Zimmer protagonizou um triste espetáculo nesse caso. Com vídeo vazado na imprensa, induzia a menina a não realizar o aborto e decidiu mantê-la em um abrigo para evitar que ela o fizesse. Ela agiu sem considerar que o direito da criança ao aborto é previsto legalmente. Inclusive, a menina e sua mãe já haviam declarado que não queriam manter a gravidez.

Na legislação brasileira, é autorizada a interrupção da gestação em três situações: quando a gravidez é decorrente de estupro, quando representa risco para a saúde da mulher e em casos de anencefalia. No caso de estupro, não há imposição de qualquer limitação de semanas da gravidez e nem exigência de autorização judicial.

O que poucos sabem é que a atitude da juíza encontra respaldo em uma cartilha disponível no site do Ministério da Saúde (MS), sob o título ‘Atenção Técnica para Prevenção, Avaliação e Conduta nos Casos de Abortamento’. O material veicula a afirmação incorreta de que “não existe aborto legal no Brasil”, que “todo aborto é um crime” e que os casos em que há “excludente de ilicitude” devem ser comprovados após “investigação policial”, cabendo então à polícia a recomendação do aborto.

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O objetivo do material, registrado na apresentação, é o de ser “um guia para apoiar profissionais e serviços de saúde”. Contudo, a cartilha presta um desserviço ao suprimir informações e desrespeitar direitos sociais, numa evidente tentativa de influenciar a opinião pública de maneira a proteger interesses da pauta de costumes conservadora do atual governo. É um ataque ao direito das meninas e mulheres ao aborto legal em caso de estupro.

Segundo dados do Ministério da Saúde (2016) “procedimentos inseguros de interrupção voluntária da gravidez levaram à hospitalização mais de 250 mil mulheres por ano, cerca de 15 mil complicações e 5 mil internações de muita gravidade”. A prática do “aborto inseguro” causou a morte de 203 mulheres só no ano de 2016. Esses dados demonstram que a luta pela descriminalização do aborto é um direito das meninas e mulheres à sua saúde e sua vida.

Sendo assim, tanto a cartilha quanto a decisão de Zimmer lesam um direito estabelecido por lei. Além disso, o tema sai do campo dos direitos humanos e da saúde da população feminina e vira um simples caso de polícia. Na prática, o material e ações como a da juíza ampliam os constrangimentos que meninas e mulheres que foram vítimas de estupro enfrentam ao optar pelo aborto legal, seguro e gratuito.

Depois do ocorrido em Santa Catarina, diversas organizações se manifestaram em defesa dos direitos das mulheres e da descriminalização do aborto. A situação escancara a necessidade de fortalecer as políticas públicas de saúde direcionadas aos direitos sexuais e reprodutivos para atender às mulheres.

Depois desse “burburinho”, o Ministério Público entrou na contenda e “recomendou” que o hospital realizasse o procedimento do aborto da menina, “independentemente de autorização judicial, idade gestacional ou tamanho do feto”. Finalmente, no dia 22/06, o procedimento foi realizado. Obviamente, isso não apaga o sofrimento decorrente do estupro, nem mesmo os constrangimentos impostos pela juíza.

O receio é que estejamos vivenciando retrocessos históricos no que se refere aos direitos sociais. Esse retrocesso pode colocar a perder conquistas históricas obtidas pelas mulheres sobre sua vida, seu corpo e seus desejos. Nesse caso, não seria somente um retrocesso no que se refere ao direito ao aborto em caso de estupro. É mais amplo. Diz respeito ao direito, inclusive, de optar de forma livre, consciente e responsável pelo não aborto em caso de estupro.

É o que ocorreu com a atriz Klara Castanho, de 21 anos, revelado na imprensa também na última semana. Ela ficou grávida após ter sido estuprada e decidiu entregar o bebê para doação legal após o parto. Esse direito, o de doar a criança fruto de estupro, também é garantindo pela lei brasileira. Mesmo assim, ela vem sendo repudiada nas redes sociais.

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As reações aos dois casos talvez revelem algo que vai além do direito ao aborto ou à adoção. Parece que todo esse retrocesso diz respeito ao fato de que o controle, a violência e o ódio contra as mulheres ainda prevalece na sociedade.

Nesse mesmo sentido pode ser interpretada a recente decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos: o fim do direito ao aborto, depois de 49 anos de autorização. Infelizmente, essa aprovação nos EUA – país que exerce influência no Brasil – e os fatos relatados acima, podem servir de base para o crescimento da tese de revisão do direito ao aborto nas três situações já citadas no nosso pais. E talvez, muito pior do que isso, haja a revisão de muitos outros direitos sociais das mulheres.

Caso tudo isso ocorra, mais meninas e mulheres podem vir a sofrer com o conservadorismo legal e moral que está a tomar conta do nosso país. Mais mulheres serão criticadas por optar pela doação da criança fruto do estupro.

É preciso dar um fim ao constrangimento de vítimas de estupro. Em seu lugar, a empatia, o acolhimento e o respeito podem ser ferramentas que minimizam as dores e transtornos.

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Dicas de Mulher.

Doutora em História, mestra em Educação e graduada em Pedagogia. Professora aposentada pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Mantém-se na luta cotidiana pela educação de qualidade, democrática e para todos.