COLUNA

A pequena seita das tarefas sem prazo

Dicas de Mulher

Se você já procrastinou alguma tarefa que não tinha prazo, você sabe exatamente como isso funciona

Começa assim: você tem alguma coisa importante para fazer. Talvez não urgente. Talvez sem um prazo. Como não há um prazo, você acaba postergando, deixando para quando estiver com melhor humor, ou para uma melhor ocasião, adiantando coisas que precisam ser planejadas ou realizadas ou entregues, coisas com data marcada, deadlines. E vai deixando a tarefa de lado.

Aí, quando tudo parece estar quase sob controle, chega uma noite em que você se lembra daquela tarefa. Ela surge pequena, humilde. Te solicita. Humildemente pede espaço, pede que lembre dela. Você se compadece. Sabe que realmente precisa se organizar melhor. Sabe que não deveria ter deixado passar tanto tempo. Você falhou. Surge uma pontinha de culpa e você decide que agora não pode mais deixar passar. Vai mudar, vai resolver essa tarefa. Até cria um prazo hipotético.

O prazo falha algumas vezes. Era hipotético, então não parece ter problema. Mas a culpa, que começou pequenininha, começa a apertar mais. Surgir em momentos impróprios.

Até que, de repente, numa noite qualquer, como se fosse uma infecção que se espalhasse, sua cabeça está completamente preenchida por aquela tarefa – aquela mesma, que tinha chegado a sua mente pequenina e humilde. A culpa agora é insustentável. Você não consegue dormir, e pensa em levantar e começar a fazer a tarefa imediatamente. Depois, muda de ideia e se força a dormir, com o argumento de que, se dormir mal, o dia seguinte não vai render nada, vai ser ainda pior, e jura que logo pela manhã vai realizar a tal tarefa.

Só que a insônia não vai embora assim, apenas porque você acha que encontrou uma solução madura, responsável, coerente. Não. Ela insiste, ela se espalha por todos os cantos da sua mente e você fica ali, olhando o teto e cogitando se seria mais adequado se levantar para pegar um café e desistir de dormir de uma vez, ou tomar um antialérgico ou um remédio contra enjoo para forçar o sono (e ficar com uma nuvem de embotamento mental rodeando sua cabeça durante todo o dia seguinte). Os olhos ardem, o corpo começa a doer. A cama fica inóspita e desconfortável.

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Não se engane: ela já acabou com você. Afinal, as duas saídas levam a uma mesma cilada. O café vai te agitar tanto que você não vai conseguir realizar sua tarefa, ainda vai te fazer dormir mal e acordar em frangalhos. O remédio vai te fazer dormir, mas vai te deixar seu raciocínio lento e impedir que o dia seguinte seja útil. No fim, o próximo dia vai acabar da mesma forma que o anterior – sua mente irritantemente gritando o fato de que aquela tarefa, importante, mas não urgente, ainda está por fazer. E ela vai crescer e crescer, até que você não consiga mais fazer qualquer coisa sem pensar nela. No banho. No almoço. No bar. Na hora do sexo. Na praia. E até assistindo aquela série ótima, que costuma prender toda sua atenção. Sofrível.

Então, você decide que precisa de alguma coisa para te livrar do estresse. E vai atrás de Yoga. Meditação. Massagem terapêutica. Acupuntura. Florais. Personal organizer. Minimalismo. Detox. Terapia. No fim, psicotrópicos. O único problema é que ela, a maldita, a malvada, continua ali. Estanque. A ser realizada. A ser consumada. A ser vencida.

Em um determinado momento desse processo, a tarefa se apequena, parece realizável. Você pode até imaginar que foi devido a todos seus esforços de autocontrole e essas coisas todas que você resolveu fazer, mas não: tarefas sem prazo se alimentam ciclicamente do seu cérebro. Elas gostam de mentes saudáveis, então, às vezes, quando percebem que você já está à beira de um colapso, elas se apequenam e permitem que você se reestabeleça. Em certas ocasiões, até aceitam ser realizadas, se deixam vencer. Isso, porém, não é o fim. Tarefas sem prazo são uma seita. Uma congregação do mal. Quando uma se realiza, é só para que você ache que as coisas estão sob controle, para que elas possam, em silêncio, destruir sua mente.

Isso porque o dia seguinte vai começar exatamente assim: você tem alguma coisa importante para fazer. Talvez não urgente. Talvez sem um prazo…

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Dicas de Mulher.

Escritora, autora de "A mulher que ri", "Efêmeras" e "Do Silêncio". Apaixonada por Clarice Lispector, clubes de leitura e pessoas. Gosta de listar coisas de três em três.