COLUNA

Uma vassoura atravessa as histórias de três mães

Dicas de Mulher

Minha vassoura eu uso para ser uma mãe real, cheia de contradições, e, assim como minha vó e minha mãe, repleta de afeto pelas crias

No próximo domingo será comemorado o dia das mães. Ano passado publiquei uma coluna apontando a fragilidade do mito do amor materno e a coragem das mulheres que escolhem não serem mães, em meio a uma cultura que propaga a ideia de que a mulher só é feliz e completa sendo mãe. Nesse ano, minha coluna comemorativa do dia das mães será bem diferente. Quero contar sobre três mães: minha avó Ana, minha mãe Irene, e sobre a maternidade que me habita. E, pode soar estranho, mas quero associar essas mães às vassouras.

Vó Ana

Meus avós paternos fabricavam artesanalmente vassouras caipiras, aquelas feitas de um tipo de capim chamado sorgo. Morávamos na cidade, no mesmo quintal deles e eu observava com muita curiosidade todo o processo de confecção da vassoura: um produtor rural da região trazia numa carroça uma montanha de palha, já sem as sementes e secas. Meus avós selecionavam as melhores e as colocavam numa forma para prensá-las; a palha era presa com um arame bem apertado, colocado na parte superior; o cabo de madeira era colocado no meio dos ramos e era fixado com pregos. Depois, a vassoura era costurada com uma grande agulha e fios de barbante e, por último, as extremidades da palha eram aparadas para ficarem no mesmo comprimento.

Vó Ana ajudava meu avô em todo o processo, mas era ela que fazia sozinha a costura e o corte das pontas da palha. Ou seja, ela era responsável por deixar a vassoura esteticamente bonita. Suas mãos habilidosas bailavam num movimento de atravessar a palha com a agulha, de um lado para o outro, formando um bordado. Depois, ela cortava as pontas do sorgo como se cortasse, amorosamente, os cabelos de um filho. Tudo isso era feito silenciosamente, pois minha vó era uma mulher tímida e submissa, como quase todas naquela época.

Na minha inocência infantil, eu via só encantamento na confecção das vassouras, que eu de fato, acabei atribuindo como sendo algo produzido somente pela minha vó. Eu não prestava atenção ao suor, às mãos calejadas, às costas curvadas e nem ao pouco rendimento da empreitada. A vassoura da minha vó se confundia com as que habitavam as histórias infantis que me eram contadas. Vó Ana era a bruxa boa, fornecedora de vassouras mágicas para as demais bruxas, as boas e as más. Ela era a mãe de todas.

Mãe Irene

Eu nasci em 1962. Pouco antes do meu nascimento, em janeiro 1961, Jânio Quadros foi eleito presidente do Brasil e sua campanha adotou a vassoura como símbolo de combate à corrupção e da moralização do país. A marchinha “Varre, varre, vassourinha…” era cantada nos quatro cantos do país, mesmo depois da sua renúncia (após uma tentativa fracassada de autogolpe), em agosto de 1961.

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Alerta: qualquer semelhança com o ocorrido nos últimos tempos é pura fantasia do leitor ou mera coincidência.

Minha mãe, Irene, cantava sempre essa música. Jânio era conservador e representava os ideais da família tradicional. Essa marchinha ressoa na minha memória até hoje. A ela se junta outra canção também muito cantada pela dona Irene. Trata-se da Dança da Vassoura, do grupo Molejo: “Diga aonde você vai, que eu vou varrendo. Vou varrendo, vou varrendo. Vou varrendo, vou varrendo…”.

Eu a ouvi muitas vezes cantando essas músicas, sempre com alegria, como se “varrer” tivesse algum significado positivo para ela que, diferentemente da minha vó, não era tímida, nem submissa, nem silenciosa. Ela trabalhava como cabeleireira, porém, quando chegava em casa sua irreverência tinha limites impostos pela cultura machista. Ela empunhava a vassoura e ia varrendo, varrendo. Quando eu a via nessa atividade, ingenuamente eu me encantava, porque parecia que estava varrendo para longe todas as dores. Ela usava as vassouras mágicas, fabricadas pela vó Ana, não só para limpar o chão.

Um exemplo de outros usos que minha mãe fazia da vassoura ocorreu quando eu me separei. Houve um período difícil com muitas rusgas entre meu ex-marido e eu. Certa vez, eu havia deixado meus dois filhos na casa dela para ir a uma festa, contudo, meu ex soube disso e foi até lá questionar minha atitude. Na frente do portão da minha matriarca, ele me xingou alto em várias línguas agressivas.

Dona Irene empunhou sua vassoura e foi até ele, pedindo calmamente que falasse baixo e parasse de me ofender, pois não havia acontecido nada de errado. Ele não parou. Pelo contrário, aumentou o volume da voz e as ofensas. Num impulso ancestral, minha mãe usou a vassoura para varrê-lo de lá, dando-lhe várias vassouradas. Não foi apenas nessa situação que a matriarca resolveu problemas com uma vassoura. Além de cantar músicas com o tema vassoura, minha mãe a usava para defender a si e às suas filhas.

Nas mãos da minha vó e da minha mãe a vassoura já era mais do que simplesmente um objeto usado para a limpeza do chão. Significados ancestrais femininos já estavam presentes.

Eu, mãe

Eu não uso tanto a vassoura, nem para varrer, nem para expulsar pessoas. Os tempos de minha avó e de minha mãe já foram varridos. Defendo a igualdade de gênero e, portanto, a vassoura da minha casa é democrática: meus dois filhos e eu a usamos igualmente.

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Hoje, sabemos que a vassoura – utilizada nas mais diversas culturas e desde os tempos mais antigos – foi associada, no final da Idade Média, à figura da bruxa. Foi o Tribunal da Santa Inquisição, entre os séculos XV e XVII, que atribuiu às bruxas poderes malévolos. Somente no final do século XX essa visão negativa e estereotipada começou a ser contestada. Junto com uma nova leitura sobre quem eram e são, de fato, as bruxas, houve também uma ressignificação de vários dos seus símbolos.

Na contemporaneidade, e numa perspectiva sócio-histórica, bruxas são mulheres livres, repletas de conhecimento sobre a natureza e a condição humana e são mulheres indomáveis, que não aceitam as amarras do patriarcado. Elas acreditam nas forças positivas do ser humano e no poder transformador do afeto. A bruxa, na atualidade, carrega consigo o arquétipo da Grande Mãe, que abriga e conecta a mãe boa e a mãe má. A vassoura é um símbolo ancestral que representa essa bruxa que existe em cada mulher, mães ou não.

Eu, mulher e mãe, tenho muitas vassouras. Meu conhecimento, minha criatividade e meus afetos funcionam como uma vassoura mágica, como as feitas por minha avó e as empunhadas pela minha mãe. Minha vassoura também é usada para varrer minhas dores e a dos que amo, incluindo meus filhos. Na maternidade que pratico, minha magia é o afeto. Minhas poções mágicas e meus feitiços residem na forma como exercito o poder de mulher cidadã no meu tempo e espaço.

Sou livre e crio meus filhos para também exercerem sua autonomia, de forma criativa e responsável com o outro. Sou mãe bruxa que voa numa simbólica vassoura, com o objetivo de desafiar o estabelecido e provocar mudanças. Minha vassoura eu uso para ser uma mãe real, possível, cheia de contradições, e, assim como minha vó e minha mãe, repleta de afeto pelas crias. Por último, uma informação importante: foi com minha vassoura que escrevi essa coluna.

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Dicas de Mulher.

Doutora em História, mestra em Educação e graduada em Pedagogia. Professora aposentada pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Mantém-se na luta cotidiana pela educação de qualidade, democrática e para todos.