COLUNA

Somos jovens metamorfoses ambulantes

Dicas de Mulher

Assim como Raul Seixas, prefiro estar em constante reinvenção, do que ter uma velha opinião formada sobre tudo

Quando eu era adolescente, nos anos 70, não via a hora de me tornar adulta. Eu queria ter uma profissão, ser independente financeiramente, sair da casa dos meus pais e exercitar livremente os afetos e a sexualidade. A linha que separava a adolescência da adultice era muito clara e eu ansiava por transpô-la. Esses objetivos eram comuns aos adolescentes daquela época.

Comecei a trabalhar aos 14 anos (1977) e passei a estudar a noite. Ao entrar no mercado de trabalho, eu já estava incorporando um marcador da vida adulta. O primeiro. Naquela época, havia mais oportunidade de emprego e muitas empresas não exigiam experiência.

O encerramento da trajetória escolar, outro marcador da entrada na vida adulta, ocorria, principalmente para as pessoas mais pobres, na fase que era chamada de “segundo grau”, o ensino médio de hoje. Poucos trabalhadores conseguiam entrar numa Universidade. Geralmente, tinham que optar pelos cursos “menos nobres” (as licenciaturas), ofertados no período noturno, pois tinham que conciliar trabalho e estudo. E, foi esse o meu caso.

Outro marcador da vida adulta era o casamento ou um relacionamento afetivo estável que indicasse um futuro matrimônio e a constituição de uma nova família. Casar ainda era um ideal para os jovens. Tive relacionamentos estáveis, porém só me casei depois dos 33 anos. Como me tornei professora universitária aos 23 anos, o casamento não me foi tão cobrado.

Sair da casa dos pais era um terceiro marcador da entrada na vida adulta. Aos 21 anos fui morar com uma amiga, dividindo as despesas e afastando-me da proteção e da fiscalização familiar.

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Por diversos caminhos, tornei-me adulta muito cedo: era independente financeiramente, tinha uma profissão e saí da casa dos meus pais. Obviamente, tais conquistas não foram alcançadas apenas como resultado do meu esforço individual. Elas foram construídas socialmente e marcaram algumas gerações de adolescentes. Adultescer era “natural”.

Esse contexto, no qual eu me tornei adulta, sofreu profundas transformações a partir dos anos 90. O modelo capitalista e importantes instituições sociais, como o Estado e a família tradicional, se desgastaram. As incertezas tomaram conta da sociedade, a tal ponto que Zygmunt Bauman (sociólogo) passou a chamá-la de “modernidade líquida”. Pós-moderna, para outros. Para combater os efeitos da crise, o consumo foi estimulado cada vez mais. O consumo, pelo consumo, passou a ser uma das principais características da sociedade, atravessando todas as relações.

Indivíduos, de diferentes idades, querem satisfazer suas necessidades rapidamente. A impulsividade, que era quase uma exclusividade da adolescência, espraiou-se pelas demais fases da vida. Para a lógica do mercado, a adolescência tem muitas vantagens. Interessa, então, que suas características influenciem as outras fases. A infância, a adolescência, a vida adulta e a velhice ficaram porosas e permeáveis. Suas fronteiras se embaralharam. E, mais do que isso, parece que a adolescência, que era uma das fases mais curtas da vida, sequestrou anos da infância e da vida adulta/velhice, impondo a elas as suas características. De tal modo, que diferentes gerações produzem quase que um único sentido para suas vidas: o de serem jovens. Crianças de 10 anos parecem adolescentes. Pessoas de meia-idade parecem adolescentes. Todos somos jovens!

O termo adultescência vem sendo utilizado para denominar adultos que parecem adolescentes. A expressão indica a permanência dos valores adolescentes na vida adulta. A tal ponto que a adolescência transformou-se em um ideal cultural. Ser jovem virou objetivo de todos. As crianças, os adultos e os idosos invejam o adolescente. Querem seu vigor físico, sua potência, suas indefinições e suas possibilidades. Preferem “ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”.

Evidentemente, há outros fatores, além do consumismo, que contribuem para que todos queiram e possam ser jovens, o tempo todo. Há, por exemplo, o prolongamento da trajetória escolar e as exigências do mercado de trabalho. Há levas de jovens que só iniciam sua vida profissional após concluir a graduação, ou até mesmo depois do mestrado, ou do doutorado. Certamente, isso é mais comum entre os jovens das classes média e alta.

Os adolescentes menos privilegiados adultescem bem antes e, com certeza, a entrada antecipada no mercado de trabalho favorece esse amadurecimento. Outro fator que pode contribuir para o retardamento da entrada dos jovens na vida adulta reside nos baixos salários pagos aos trabalhadores, o que dificulta a independência financeira e retarda a saída da casa dos pais.

Enfim, para ser jovem o tempo todo, é preciso renovar cotidianamente o contrato com a adolescência. É necessário se reinventar sempre. Mas, o que fazer, então, nesse cenário de adultescência e de incertezas? Quais consequências a adultescência gera para os indivíduos e para a sociedade? Perguntas complexas merecem reflexões profundas. É preciso fugir do senso comum que, muitas vezes, nos leva a simplesmente concluir que os jovens de hoje são uma geração perdida. Eu, do meu lado, jovem aos 60 anos, sigo em frente, na luta, pois, “acredito é na rapaziada, que segue em frente e segura o rojão; ponho fé é na fé da moçada, que não foge da fera e enfrenta o leão” (Gonzaguinha).

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* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Dicas de Mulher.

Doutora em História, mestra em Educação e graduada em Pedagogia. Professora aposentada pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Mantém-se na luta cotidiana pela educação de qualidade, democrática e para todos.