COLUNA

Só pra avisar: eu cheguei bem!

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Quase toda mulher já se sentiu insegura em uma corrida de aplicativo, mas aqui eu quero clamar pelo cuidado - afinal, ele está ao nosso alcance

Estava pensando em que assunto falar nesta semana: talvez sobre como a inflação dificulta a vida financeira de mulheres independentes e mães solo, ou a maestria com que Anitta despreza certo cantor sertanejo, ou o fato de Millie Bobby Brown, de “Stranger Things”, sofrer com comentários sobre sua aparência frequentemente.

Mas decidi falar de outro assunto, um que me preocupa quase todos os dias e, muito provavelmente, a você também: a falta de segurança para mulheres em transporte por aplicativos. É um assunto pesado, eu sei. E gostaria muito que homens lessem cada linha desse texto com muita atenção – e compartilhe com os que forem próximos a você.

Leia esse relato e depois me abraça

Era uma quinta-feira, de um dia bem quente e perfeito para tomar uma cerveja com uma amiga, em um dos meus bares favoritos. Chamei um carro por meio daquele aplicativo que vou chamar de Unicórnio. O motorista estava perto e chegou logo, o que foi ótimo porque estava bem empolgada para colocar o papo em dia.

Assim que entrei no carro e fechei a porta, dei boa noite ao motorista e perguntei se estava tudo bem, hábito meu em qualquer contexto. Ele me olhou no retrovisor fixamente, respondeu ao cumprimento e disse em seguida: “Reparei sua tatuagem na coxa. Ela é bem grande, né?”.

Racionalmente, acreditamos que, em situações assim, nas quais um homem comenta sobre o nosso corpo, vamos saber lidar e logo cortar o assunto. Mas as coisas não funcionam bem assim. Não estamos preparadas para isso. Sabe por quê? Porque comentar sobre o corpo do outro é invasivo, mais ainda se você é um estranho.

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Fiquei sem reação e me senti invadida. Eu mal tinha entrado no carro, e o motorista já estava de olho na minha coxa e declarou estar olhando. Lembro que eu soltei um “É” que nem sei de onde saiu. Depois fiquei quieta. A corrida seria curta, uns seis minutos, logo eu sairia daquele carro. E, no fundo, torcia para que o meu silêncio bastasse.

Mas, meu silêncio e meu visível desconforto não bastaram. A pergunta seguinte, sem qualquer demonstração minha de “você pode falar sobre X coisa”, foi: “você pega homem ou só mulher?” – o que ainda tinha um julgamento pautado na minha aparência, muito provavelmente.

Nesse momento, eu não consegui dizer nada, simplesmente travei e o desespero começou a tomar conta. Mandei mensagem para minha amiga e disse “achava que o motorista estava me assediando”.

Assim que cheguei ao bar, desci do carro quase correndo, mas com a sensação de que eu estava sendo olhada o tempo todo pelo motorista. Ele ainda disse: “Talvez eu passe aqui mais tarde, viu?”.

Aqueles seis minutos da corrida pareceram seis anos. Minha amiga me esperava no bar, preocupada. Quando nos encontramos eu estava sem saber o que dizer. Em seguida, falei uns cinquenta palavrões e tive vontade de chorar.

E se fosse uma corrida longa? E se tivéssemos em ruas pouco movimentadas? E se ele desviasse da rota? E se tentasse me tocar? E se, e se, e se… muitas possibilidades passaram pela minha cabeça. Eu fiquei me sentindo tão mal, que parecia que eu estava inadequada: minha roupa está curta demais? Será que eu fiz algo que desse a entender que estava interessada? A mulher quase sempre se culpa em um primeiro momento.

Denunciei o motorista no aplicativo, ele foi banido, mas a experiência me marcou. Desde então, sempre tenho medo de andar de uber à noite, quando quero simplesmente sair para me divertir. Isso me deixa o tempo todo em estado de alerta. Banir o motorista foi o mínimo, mas não me livra do problema em si.

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O medo como rotina

Frequentemente compartilho minhas corridas com um amigo ou amiga, costumo avisar que cheguei bem, que já estou em casa, segura. E sei que, além de mim, outras mulheres fazem a mesma coisa em todas as corridas. Quanto mais tarde voltamos de algum local, mais temos medo de assédio – e de atos piores que esse.

Talvez pareça coisa boba, mas não é. O medo ronda a vida das mulheres, seja andando sozinha na rua à noite, seja pegando uma corrida em aplicativo justamente para não andar a pé por aí. Somos vigilantes da nossa própria vida.

E não me diga para pegar carona, comprar um carro, voltar cedo ou qualquer coisa nesse sentido. Isso seria como deixar de cortar o mal pela raiz e tentar cortá-lo pelos galhos de uma árvore bem grande, com muitos, muitos anos – e que atende pelo nome patriarcado. Eu preciso poder ir e vir em segurança, é um direito que deveria ser garantido a toda mulher.

Para piorar a situação, na semana passada, o G1 noticiou que Maria (nome fictício), de 32 anos, foi dopada em São Paulo por um motorista de aplicativo. Ele havia lançado algum produto químico no ar, dentro do carro, e manteve as janelas fechadas. A passageira foi ficando cada vez mais zonza e com a visão turva. Pediu para descer do carro imediatamente, porque uma amiga havia passado pela mesma situação poucos dias antes.

Em Porto Alegre, Evelyn Moraes, de 22 anos, passou por situação semelhante no início de março deste ano. Ela acabou se atirando do carro em movimento antes que desmaiasse e teve lesões no quadril e na perna.

Os aplicativos têm facilitado as denúncias pelas próprias plataformas, para dar suporte às mulheres tanto na condição de passageiras quanto de motoristas. No entanto, conforme divulgado pelo Estadão no ano passado, cerca de 2.334 denúncias foram registradas, mas somente 1 em cada 10 virou inquérito policial.

Diante de tudo isso, o que nos resta?

Pensando em algo possível de ser alcançado diante dessa realidade, resta torcer para que os aplicativos tenham mais motoristas mulheres e possamos escolher andar com mulheres quando bem entendermos, enquanto “consumidoras” de um serviço – diz-se que o tal Unicórnio tem essa opção, mas não é bem verdade. E os aplicativos somente para mulheres? Seria ótimo se eles funcionassem em todas as cidades.

Além de tudo, esbarramos ainda em outra questão: há poucas motoristas no período noturno porque elas também não se sentem seguras para dirigir. Costumo conversar com mulheres que trabalham em aplicativos de mobilidade e muitas relatam trabalhar no máximo até o escurecer do dia.

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É difícil, e não estou aqui para trazer nenhuma solução – eu bem que gostaria, juro. Só queria dizer: tome cuidado, ou continue tomando cuidado. Compartilhe sempre sua corrida com alguém próximo que possa acompanhá-la em tempo real.

Em situações mais inseguras, finja estar falando com alguém ao telefone. Despeça de seus amigos em alto e bom som dizendo: “assim que eu chegar em casa, te aviso, tá?”. E avise mesmo. Informe que está bem, em casa, segura. Se tiver como, dê carona para sua colega de trabalho, amiga, deixe sua namorada em casa. Se não puder, tudo bem, cuide de si e das outras mulheres ao seu redor da forma que estiver ao seu alcance, mas cuide.

Mais do que isso, volto a dizer como disse na coluna anterior: eduque meninos para saberem respeitar e amar mulheres, eduque meninas para saberem impor limites e identificar o que é ou não uma ação saudável.

Talvez daqui a uns anos, nossas meninas possam ser mulheres que respiram com o peito mais leve enquanto se deslocam para seus compromissos e lazer – eu espero do fundo do coração que sim!

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Dicas de Mulher.

Fez Letras, mas se encontrou na área de Comunicação. Mediadora do clube de leitura #LeiaMulheres e autora do livro de poemas 'O rio seco que vive em mim'. Gosta de planta, de bicho e de gente, mas mais ainda de histórias.