COLUNA

Você teria uns minutos para falarmos sobre pobreza menstrual?

Estela Lacerda

Ainda em 2022, faltam políticas públicas em funcionamento que assegurem a higiene menstrual e isso é uma violação de direito à saúde

Não é a primeira vez que falo aqui sobre minha infância e adolescência. Gosto de partir dela, um lugar seguro pra mim e de histórias que consigo contar com tom leve para, somente depois, falar de coisas grandes e sérias.

Menstruei aos dez anos de idade, quase onze, faltavam uns poucos dias. Por ser muito jovem, na escola ainda não tinham falado sobre o assunto. Em casa, só tinha ouvido falar bem de longe, nada muito explícito.

Talvez, na cabeça da minha mãe, ainda fosse cedo para falar a respeito da menstruação e como a nossa vida muda após esse acontecimento. Além disso, ela passava mais de dez horas fora de casa, chegava exausta e ainda ia verificar nossas tarefas e preparar algo que pudéssemos comer.

Diante disso, após minha primeira menstruação, eu apenas silenciei. Tentei esconder qualquer vestígio. Não queria ouvir um “Agora você é uma mocinha”. Eu adorava jogar bola com os meninos, correr na rua, andar de bicicleta. Os meninos não me aceitariam.

Mas aquele sangue todo não parava de descer. Então, eu lembrei de uma coisa que minha mãe usava quando era mais nova para “estancar” o sangue da menstruação. Um objeto que eu olhava com curiosidade quando criança e ficava pensando quando é que eu usaria aquilo também.

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Durante muito tempo, minha mãe, minhas tias, as suas e provavelmente as mulheres da sua família também usaram uma pequena toalhinha no lugar do absorvente. Não, ele não foi inventado há tão pouco tempo assim. Criado pela afro-americana Mary Kenner, passou a ser usado por volta de 1956. Mas o fato é que mulheres pobres não tinham acesso a ele, e minha mãe era uma delas. Por isso, durante muito tempo, usava aqueles paninhos e os lavava, assim como se fazia com fraldas de crianças.

Quando minha mãe teve condições de comprar seus absorventes, as toalhinhas foram aposentadas. Lembrei delas quando menstruei e foram elas que me salvaram no plano não maligno de esconder a minha menstruação. Até que eu, uma grande molecona, esqueci de lavar um paninho. Dona Suely, me chamou num canto pra conversar quando o encontrou no cesto de roupa suja. Foi assim que comecei a usar absorventes.

Aonde eu quero chegar com isso? Apesar de a minha família ter origens simples, eu, que hoje tenho 30 anos, tive acesso a absorventes desde minha primeira menstruação. No entanto, essa não é a realidade de muitas pessoas que menstruam no Brasil.

Pobreza menstrual e a não distribuição de absorventes gratuitamente

A Organização das Nações Unidas (ONU) determina que o acesso à higiene menstrual é um direito e, portanto, deve ser uma questão de saúde pública. Ainda assim, no Brasil, isso não se tornou um direito garantido por Lei.

Um relatório do Livre para Menstruar, do movimento global Girl Up, aponta que uma em cada quatro adolescentes no Brasil não possuem um absorvente durante o período menstrual. Isso sem falarmos em mulheres adultas.

Além disso, mais de 713 mil garotas brasileiras não têm acesso a cuidados como higiene menstrual, isto é, vivem sem banheiro ou chuveiro em casa. Mais de 4 milhões não têm acesso a absorventes, sabonetes e banheiros, nem mesmo nas escolas. Esses dados assustadores e tristes foram apontados pelo estudo ‘Pobreza Menstrual no Brasil: desigualdade e violações de direitos’, do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF).

Em presídios, por sua vez, 24,9% das presas não têm acesso a um kit de higiene menstrual, conforme indica o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen). Assim, utilizam panos (lembra da toalhinha da minha mãe e que eu também usei?), jornais, papel higiênico e até miolo de pão. Itens que podem gerar infecções e doenças graves.

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Essa precariedade viola um direito básico que todos deveriam ter acesso: à saúde. O Estado deve garantir que pessoas que menstruam tenham acesso às condições sanitárias básicas para menstruar com dignidade e garantindo seu bem-estar. Isso é, também, garantir a igualdade social.

Mas a complexidade não para por aí. É preciso também que haja acesso a informações sobre o que é a menstruação, como lidar com ela e de que modo ter acesso a itens de higiene menstrual.

Neste mês de outubro, faz um ano que foi aprovada no Congresso a Lei 14.214/2021, que cria o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual. Em tese, ela assegura a distribuição de absorventes para pessoas de baixa renda, mas ainda não foi colocada em prática.

O Ministério da Saúde não garante um prazo para colocar essa ação em funcionamento, conforme declaração emitida nesta semana. Segundo a pasta, o impedimento ocorreu devido às leis eleitorais. A grande questão é: após tanto tempo, não daria para essa lei já ter sido colocada em prática, visto que viola um direito básico?

Enquanto isso, estudantes do ensino fundamental e médio, bem como mulheres em vulnerabilidade, continuam sem acesso à higiene menstrual e, portanto, à saúde enquanto um direito humano.

Por que isso é tão problemático? Menstruar sem ter dignidade afasta meninas da escola, afetando seu desempenho escolar e aumentando a evasão. Quanto às mulheres, isso as impede de manter compromissos ou rotina normalmente, seja para buscar uma recolocação no mercado de trabalho, ir ao mercado, ou cuidar da casa ou família.

É importante mencionar também que a menstruação não diz respeito à identidade de gênero, portanto, pessoas com útero e vagina menstruam, inclusive transexuais. Essas pessoas sofrem muito com a falta de políticas públicas que os acolham de modo mais amplo, estando frequentemente em vulnerabilidade.

Para combater a pobreza menstrual no Brasil, é necessário investir em aulas sobre educação sexual, com informações mais amplas e claras sobre menstruar, ter infraestrutura em escolas para acolher meninas e distribuir gratuitamente itens de higiene básicos não só em escolas, mas também postos de saúde e hospitais. Sem falar que conhecimento é essencial, campanhas sobre o assunto podem tirá-lo do rol de tabus.

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Meninas como eu tiveram acesso a absorventes, embora com pouca informação, e é possível que sua filha, sobrinha ou amiga também tenha, mas infelizmente essa não é a realidade de muitas pessoas que menstruam.

Pensar no coletivo e lutar por um mundo mais igualitário para todas nós passa por ações como esta: garantir – ainda – o básico, uma política pública, ou seja, itens de higiene menstrual. Não podemos esquecer disso!

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Dicas de Mulher.

Fez Letras, mas se encontrou na área de Comunicação. Mediadora do clube de leitura #LeiaMulheres e autora do livro de poemas 'O rio seco que vive em mim'. Gosta de planta, de bicho e de gente, mas mais ainda de histórias.