COLUNA

Um filme de terror chamado “grupo da família em época de eleições”

Quando criaram o WhatsApp, não imaginavam que o aplicativo se tornaria palco de discussões políticas entre familiares, mas cá estamos nós

Em 29.09.22

As pessoas que nasceram antes da década de 10 vão se lembrar: houve um tempo quando toda briga de família precisava acontecer presencialmente. Os conflitos eram variados, traições, divisão de herança, uma pessoa passando a perna em outra, intrigas e implicâncias, essas coisas de praxe. Mas, sem o “zap”, as grandes comoções precisavam esperar as reuniões de domingo ou de final de ano, geralmente na casa dos patriarcas da família.

Eram brigas corajosas. Dedo na cara, tapa na mesa, gente levantando a voz, altercações acaloradas com um peru natalino ou macarronada como árbitro. As crianças, recém-saídas da piscina inflável, com a toalha nas costas e um pratinho de carne na mão, sussurravam: “mãe, por que os tios estão brigando?”. A mãe questionada (qualquer uma delas) dizia que era “coisa de adulto” ou alguma variação disso e tentava levar as crianças para longe, enquanto outras pessoas sossegavam os ânimos dos galos de rinha. Às vezes, alguns pegavam suas coisas e iam embora em protesto. Restava uma aura pesada por um tempo, mas, se não fosse nada muito grave, logo passava.

Quando, em 2009, Brian Acton e Jan Koum criaram o WhatsApp, não poderiam saber que esse cenário peculiar seria absorvido pelo aplicativo em uma versão mais desesperadora, o grupo da família.

Isso porque, ao mesmo tempo que foi possível se manter mais próximo de parentes distantes e queridos, o grupo da família rompeu com o espaço-tempo delimitado que era dedicado às brigas familiares. Agora, elas podem se dar em período integral, durante o ano todo. E com novos recursos! Vídeos, figurinhas, arquivos de áudio, links bizarros de algum site com conteúdo questionável – tudo pode ser uma arma de destruição para essa instituição social que é a briga familiar.

É claro que houve um contraponto. Ao transportarmos as brigas para o espaço virtual da internet, poupamos as criancinhas de várias cenas que poderiam ficar em suas memórias. Lembro até hoje de grandiosas discussões presenciadas na infância, tanto do lado da família do meu pai quanto do lado da minha mãe. Mas nada nos preparou para o que seria lidar com a política brasileira dos últimos anos estando em um grupo da família no WhatsApp.

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O grupo, nesse contexto, se transforma em uma espécie de filme de terror meio nonsense, onde são compartilhadas figurinhas cada vez mais ofensivas, fake news, vídeos adulterados. Fico pensando no nível de absurdo que Beckett e Kafka teriam alcançado em suas respectivas literaturas se tivessem passado pela experiência de fazer parte desses grupos.

O fato é que, se formos parar para pensar, o grupo da família no “zap” é uma eterna macarronada de domingo: gente se cumprimentando (bom dia e boa noite), fotos de crianças, muita fofoca e todo mundo falando alto sem que ninguém se entenda. O que é esperar alguém que não se sabe quem é e que nunca chega (como em ‘Esperando Godot’) ou amanhecer transfigurado em um inseto (como em ‘A metamorfose’) perto desse cenário, não é mesmo?

Dizem por aí que, para o mal ou para o bem, a gente não escolhe a família que tem. Se você teve sorte de nascer em uma que é muito parecida com você em termos ideológicos, agradeça. Na maioria dos casos não é assim. E, em tempos de eleições, a situação fica ainda mais latente.

Além disso, apesar de ser desejável, o diálogo nem sempre é possível. Uma parte da família defende ferrenhamente um grupo ou candidato x, que representa melhor suas próprias ideologias. Outra parte defende o grupo ou candidato y, com o qual se identifica mais. O ambiente virtual deixa as pessoas mais confortáveis para serem agressivas e dizerem coisas que não falariam pessoalmente. Além disso, é mais fácil interpretar mal o que é dito em discussões on-line.

Sem o olho no olho, há muito espaço para a virtualização do outro. A internet acaba conferindo certa irrealidade às pessoas que estão do outro lado da tela, então é fácil esquecer que existe um ser humano ali, que pode se ferir com nossas palavras. Também é mais difícil ser respeitoso e ter empatia quando a gente não tem a pessoa materialmente diante de nós.

Para evitar esse tipo de conflito, muitos optam por deixar o grupo da família (um equivalente ao “pegar as coisas e ir embora do almoço”). Confesso que foi a minha opção. Deixei o grupo da família em dezembro de 2021, depois de um parente postar alguma bobagem sobre um político do qual ele gosta ou sobre o outro, do qual ele não gosta, nem lembro bem qual foi o caso. Não falei nada, apenas saí.

Eu já havia pedido repetidamente para que não usássemos o grupo da família para falar sobre política. Era uma posição com a qual a maior parte das pessoas ali concordava, pois temos visões diferentes. Então, achei bastante violento que ele insistisse em levar o assunto para lá, gerando conflito, quando a maioria estava de acordo com a ideia de preservar nosso espaço. Levantar aquele assunto de certa forma forçava as pessoas que eram contrárias a se manifestar, e o clima sempre ficava tenso – pelo menos eu sentia assim. E sei que não daria para mudar ou modular as opiniões de ninguém ali, seria apenas a discussão pela discussão.

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Desde que saí do grupo, só converso pessoalmente com os parentes de ideologias diferentes da minha. Nunca me arrependi. Quando nos encontramos, eles continuam sendo as pessoas que eu lembrava que eles eram antes de toda a comoção política atual. Há outros assuntos possíveis, há risadas e memórias. Mais do que os pontos que nos afastam, fica mais fácil enxergar o que nos une quando estamos sentados em torno de uma mesma mesa. Até a conversa sobre política, quando acontece, é um pouco menos difícil. Eu prefiro assim.

Sei que alguns dos meus parentes vão votar em candidatos diferentes dos meus nas próximas eleições. Gostaria que entendessem meus motivos para defender a ideologia que eu defendo e que, quando o faço, também é pensando neles e no nosso futuro coletivo. Imagino que, do jeito deles, eles também acreditem estar fazendo o mesmo, ainda que eu discorde dos meios.

Quando alguém me pergunta sobre minha posição política, eu falo, debato, explico. Tenho muita clareza dos meus motivos, pesquisei, refleti sobre o assunto, não falo por emoção ou sem embasamento. Mas seria contra minha ideologia forçar a opinião que defendo sobre outras pessoas. Isso porque eu acredito muito na democracia, e aceitar que as pessoas pensem diferente faz parte disso. Às vezes é difícil, eu sei, quando sabemos algo sobre certos políticos e achamos bárbaro e violento demais para tolerar. É por isso que a democracia e o respeito são exercícios diários. Então, defendo o que acredito ser justo e correto e busco, dentro do meu alcance, que essa justiça seja efetivada na prática, tanto no campo da política em geral, com o voto e a participação cidadã ativa, quanto na micropolítica do dia a dia. Essa é a minha forma de lutar por um mundo melhor.

Não sei se um dia eu voltarei para o grupo da família. O clima de agressividade me faz mal, acho que prefiro me poupar. Além disso, sei que as pessoas são mais humanas fora do mundo virtual, então, nesse ponto, e somente nesse ponto, sou saudosista e nostálgica e digo que, entre a guerra de figurinhas no “zap” e o dedo na cara no almoço de domingo, prefiro a briga à qual eu posso assistir enquanto compartilhamos o pão.

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Dicas de Mulher.

Escritora, autora de "A mulher que ri", "Efêmeras" e "Do Silêncio". Apaixonada por Clarice Lispector, clubes de leitura e pessoas. Gosta de listar coisas de três em três.