COLUNA

Cozinhar é um ato político e de autocuidado

Canva

Minhas memórias mais antigas com comida remetem à cozinha da casa em que cresci e da casa dos meus avós na periferia de São Paulo. Esses espaços eram sempre gerenciados pelas mulheres da família e mantidos naturalmente bagunçados. Afinal, cozinha brilhando o tempo todo era uma cozinha improdutiva, sem vida.

Cresci num meio em que comida é aquilo que sai da panela, foi criado por alguém e nos conecta a pessoas que muitas vezes até sabíamos os nomes (Nardo, o feirante, por exemplo). Cozinhar exigia todo um planejamento centrado nas mulheres e do qual eu gostava muito de participar. Pensar no cardápio, ir à feira ou ao mercado da esquina, e improvisar. Deixar de cozinhar só se fosse para ir à pizzaria do bairro. E era lá que a família se reunia e era atendida pelo mesmo garçom.

Com o tempo, essa dinâmica foi mudando. A indústria alimentícia foi chegando com a narrativa da praticidade como forma de ter tempo para atividades mais importantes. Pizzas e pratos prontos, hambúrgueres congelados e pães de pacotes passaram a dominar as prateleiras. O tamanho dos mercados aumentou e o das cozinhas nos projetos arquitetônicos diminuiu. Continuar cozinhando passou a ser resistência!

Cozinhar como forma de promoção da saúde e de proteção do sistema alimentar é desafiador. Exige apego à nossa ancestralidade e a desconstrução do machismo nas relações cotidianas. Embora cozinhar não torne uma mulher menos feminista, será que ela deve ser a única responsável por essa atividade? Se há outras pessoas e crianças no domicílio, por que não envolvê-las na divisão de tarefas? Além de otimizar o tempo, são habilidades importantes de serem transmitidas.

Cozinhar é instrumento de cidadania e de desenvolvimento de senso crítico. Não é a toa que a sofisticação da publicidade de alimentos só aumenta. Já reparou no número de influenciadores que defendem o meio ambiente e os direitos humanos, mas aceitam fazer publicidade de refrigerantes e outros ultraprocessados? Pois é, o direito à alimentação também é um direito social básico previsto na Constituição Federal.

Publicidade

Para você que se orgulha em não saber cozinhar, mas consome comida de restaurante adquirida pelos aplicativos, deixo aqui uma reflexão. Aquele que entrega a sua comida consegue se alimentar bem?

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Dicas de Mulher.

Nutricionista doutora em Ciências e defensora do Guia Alimentar para a População Brasileira. Adora cozinhar, explorar novas culturas alimentares e fazer conexões com a natureza e as pessoas.