COLUNA

A (não) traição contra Rihanna e o que isso nos diz sobre relacionamentos

badgalriri

Um assunto delicado com muitos parênteses e aspas

Atualizado em 06.07.22

Na quinta passada, dia 14 de abril, a notícia que quebrou a internet (sempre tem alguma) foi a de que a gravidíssima Rihanna teria terminado seu relacionamento com A$AP Rocky devido a uma traição. Supostamente, ele teria um caso com Amina Muaddi, designer de sapatos que já trabalhou para a Fenty, marca da cantora, e criou uma coleção de sapatos com o rapper.

Pouco tempo depois, a história foi desmentida, mas o mal estava feito. Os três nomes foram trazidos para o centro de um circo de postagens, debates e suposições sobre suas vidas particulares, a ponto de, aparentemente, o casal ter se recolhido um pouco e estar evitando holofotes. Até porque a mulher está grávida e a última coisa da qual ela precisa é que seu relacionamento seja debatido por veículos midiáticos do mundo todo (incluindo este aqui, perdão por isso, Riri – mas não vou focar nesse ponto, prometo).

Quando a notícia inicial saiu, a primeira frase que me veio à mente foi: “se a Rihanna foi traída, que destino resta para nós, pobres mortais”. Mas eu mal havia terminado de formular esse pensamento e todos os alertas problematizadores do meu cérebro estavam ativados e gritando em uníssono. Apesar de eu conseguir dar alguns motivos diferentes para isso, fiquemos apenas com o principal.

Traição não é sobre a vítima

O motivo de eu ter problematizado o meu pensamento inicial é que, quando julgamos a Rihanna como menos passível de sofrer uma traição, estamos apenas refletindo nossa cultura de culpabilização das vítimas, como se uma pessoa fosse traída por lhe faltar algo que o evitasse.

Aliás, é bastante comum que, ao sofrer uma traição romântica, boa parte das pessoas busquemos em nós mesmas o excesso ou a falta que tenha ocasionado aquilo: será que não sou bonita? Será que não sou divertida? Será que sou muito gorda/velha/nova/alta/baixa? O que ela(ele) tem que eu não tenho?

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Essa falta ou excesso pode estar em qualquer campo e ressoar alguma(s) de nossas inseguranças. Pode girar em torno da beleza, juventude, dinheiro, sucesso etc. Mas, curiosamente, o problema nem sempre é buscado… em quem traiu. Por quê? Afinal, quem falhou com o pacto de honestidade estabelecido foi a pessoa que traiu, não a traída.

Parece-me que a questão aqui é que aplicamos aos relacionamentos uma lógica utilitarista, em que é completamente válido e aceitável trocar um objeto entendido como “inferior” ou “ultrapassado” por uma versão mais moderna, com mais recursos. Não estou inventando a roda aqui dizendo isso: Karl Marx já apontou esse problema em “O Capital”, ali em 1867, quando falou sobre “o fetichismo da mercadoria”. O contexto era outro, claro, mas aponta para esse apagamento do subjetivo e humano por traz de relações utilitaristas de mercado – mesmo em contextos tão afastados do mercado como o dos relacionamentos amorosos.

Pessoas não têm preço

Os problemas de incorporar essa lógica às nossas relações afetivas são inúmeros, a começar por: o que está sendo utilizado para definir o “valor” das pessoas e hierarquizá-las como melhor e piores, ultrapassadas e modernas? Quais os parâmetros ou características que medem isso? E, mais do que isso, por que tendemos a nos colocar justamente nesse lugar do objeto “falho”?

Por outro lado, é comum que coloquemos uma Rihanna ou uma Beyoncé nesse lugar das mulheres que jamais seriam vítimas de traição, por serem “produtos top de linha” – mulheres ricas, dentro do padrão dominante de beleza, representativas da definição corrente de sucesso etc. Elas poderiam até trair (já que a traição também é uma questão de poder, e de como esse poder é exercido no desequilíbrio de uma relação), mas não poderiam ser traídas, pelo “valor” que existe em “tê-las” como parceiras.

A questão é que estamos falando de pessoas, não de objetos. Pessoas não podem ser hierarquizadas a partir dos mesmos critérios de mercado com os quais hierarquizamos o valor dos objetos. Pessoas não são posses.

Outro detalhe curioso é que essa lógica nos faz assumir, nós mesmos, esse processo de (auto-)objetificação e “precificação”. E geralmente nos colocamos justamente nessa posição de objeto imperfeito passível de troca, dando ao outro o “poder de compra” e decisão, além do poder de validação de quem somos – ou seja, nós nos alienamos da nossa identidade e do nosso valor.

A horizontalidade é a resposta

Focando especificamente no tema “traição”, não há nenhuma lei, nem humana, nem natural, nem “divina”, que impeça as pessoas de se interessarem por outras pessoas estando em um relacionamento. Agora, há uma questão moral que media o que uma pessoa, estando em um relacionamento, vai fazer com essa atração. As soluções éticas para uma atração variam, podendo passar por sublimar o sentimento, terminar o relacionamento, mudar o formato da relação… Trair certamente é, das soluções possíveis, a mais antiética e a que mais desumaniza e objetifica a outra pessoa, que acaba capturada nessa lógica utilitarista sobre a qual tenho falado aqui.

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Fiquei sinceramente feliz em saber que a traição sofrida pela Rihanna era um boato. E não porque ela seja tão melhor que as outras mulheres que não possa ser traída – não quero me permitir avaliar as relações a partir dessa lógica. Minha felicidade vem de acreditar ser direito de qualquer pessoa engajada em um relacionamento poder vivê-lo de forma horizontal, com reciprocidade, equilíbrio, equivalência. Ou seja, eu acredito muito que nossas relações não devem ser pautadas por uma lógica (fetichista) de mercado e, sim, pela ética e pelo diálogo. É bem absurdo que, em pleno século XXI, a opção de algumas pessoas siga sendo a do falseamento e do desequilíbrio de forças em vez do diálogo e da horizontalidade.

Para encerrar, é importante dizer que não estou defendendo aqui que essa horizontalidade só exista em relacionamentos tradicionais, fechados e monogâmicos. Muito pelo contrário, eu acredito que, havendo parceria e diálogo, as possibilidades de inventar novos formatos de relação são inúmeras. Só que, para que esses formatos diferentes existam, além de muito diálogo entre as pessoas envolvidas, é fundamental refletir muito quando nossos alarmes soarem e nos fizerem questionar os padrões de pensamentos com os quais já estamos há muito tempo acostumados. Aqueles que nos fazem perguntar “se a Rihanna pode ser traída, por que eu não poderia?”

À parte isso, desejo toda felicidade do mundo para Rihanna e o bebê!

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Dicas de Mulher.

Escritora, autora de "A mulher que ri", "Efêmeras" e "Do Silêncio". Apaixonada por Clarice Lispector, clubes de leitura e pessoas. Gosta de listar coisas de três em três.