COLUNA

O dia em que fui grama: relato da minha primeira experiência com a Ayahuasca

Thays Pretti

A Ayahuasca é um chá com potencial alucinógeno, com uso liberado pela legislação brasileira para fins religiosos

Sou extremamente careta, caxias e medrosa, de modo que, na primeira vez que Chico (nome fictício) me convidou para uma cerimônia de Ayahuasca, neguei sem titubear. Mesmo já sabendo que o chá não cria dependência e é liberado no Brasil, o medo de ter uma bad trip sempre me manteve longe desta e de quaisquer substâncias que alterassem o estado normal da minha consciência.

Claro, com exceção de outras substâncias legais, como álcool, cafeína e energético (coerência? Talvez estejam esperando demais de mim).

Fato é que não estava muito disposta a ter contato com alucinógenos a princípio – afinal, como dizia o grande Belchior, “minha alucinação é suportar o dia a dia e meu delírio é a experiência com coisas reais”. Por isso, neguei mais uns quatro convites, sempre declarando medo ou dizendo ter algum compromisso na data. Até que, num arroubo de coragem, decidi aceitar. Eu, enfim, participaria de uma cerimônia.

Não pesquisei muito a respeito do chá, porque não queria criar bloqueios e ideias preconcebidas. Sabia, porém, que ele tem origem indígena e é composto por duas plantas amazônicas, o cipó de mariri (Banisteriopsis caapi) e as folhas da chacrona (Psychotria viridis). Sabia também que, no chá, o mariri representa o polo masculino e a chacrona, o feminino.

Eu também já tinha conhecimento de que poderia sentir uma intensa conexão com a natureza, mas que também poderia vomitar ou “evacuar” o chá de outras diversas formas, na chamada “peia”. Mais que isso, nada. Não li sobre a cerimônia, até por ela ser sempre diferente para cada vertente ayahuasqueira e cada encontro, mesmo para frequentadores assíduos. Tudo depende do que a “Força” quer ensinar naquele momento.

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Chico havia me instruído a me agasalhar bem, porque era comum sentir muito frio após consumir o chá. Eu não poderia consumir álcool e carne desde o dia anterior à cerimônia, e ele também sugeriu que eu levasse colchonete, almofada e cobertor, para experimentar a “borracheira” – o transe da Ayahuasca – do modo mais confortável possível. Eu, dedicada e obediente, levei todas as instruções estritamente à risca. E fui encontrá-lo ansiosa, mas com a tranquilidade de que estava me preparando da melhor forma que eu poderia.

Pachamama

Chegar ao local onde aconteceria a cerimônia já teve um impacto bastante curioso. Era uma casa simples e alugada por um grupo para estudos, meditações e cerimônias de Ayahuasca. A decoração lembraria facilmente a de um estúdio de ioga ou de outro local dedicado a experimentações místicas, mas tudo minimalista e com muita leveza. Havia também um grande gramado, com um local para acender uma fogueira. Era ali em torno que seria a cerimônia.

Estávamos em cerca de quinze pessoas e, perdoem o preconceito, a maioria delas não se parecia com pessoas que eu imaginaria que se aventurariam regularmente com um chá dito alucinógeno. Quebrar essa primeira imagem do que seria um ayahuasqueiro – imagem que eu nem sabia que criara – foi o primeiro movimento de conexão comigo, que me fez entender o quanto eu conhecia pouco as pessoas e vivências – e que talvez devesse recebê-las de modo ainda mais aberto do que eu já fazia.

A fogueira foi iniciada, colocaram músicas suaves para tocar, queimaram incenso e pau santo. Um casal presidiria a cerimônia e, antes do início, a mulher andou em torno da fogueira com uma espécie de turíbulo. Nele, algum tipo de incenso ou erva queimando. Isso se repetiria algumas vezes durante a cerimônia, e me lembro vivamente do cheiro, tão agradável, que sentiria de olhos fechados e sentidos despertos.

O homem deu início à cerimônia com um “chamado”, uma espécie de canto não muito harmônico, apenas vocalizado, que me lembrou cânticos de igreja – até por ter temas cristãos. Fomos convidados a repetir algumas palavras que dariam início ao rito, e formamos uma fila para receber o chá e uma fatia de maçã, que serviria para amenizar o gosto forte do líquido. Como foi minha primeira vez, tomei uma dose consideravelmente reduzida – conforme reparei ao comparar meu copo com os demais. Tomamos todos simultaneamente, e, embalados por músicas de meditação, cânticos e chamados, nos aconchegamos em nossas almofadas e cobertores para esperar o efeito do chá.

Eu sou a grama

Eu não fazia ideia do que era a “borracheira”, então estava muito atenta aos meus sentidos para perceber até as menores alterações. Gostaria muito que minha primeira experiência tivesse sido como a do Chico, que viveu uma conexão total e profunda com a natureza logo no primeiro copo. Para mim, infelizmente, não foi assim – talvez por eu ser muito “mental”/racional, enquanto Chico é emocional.

Uns vinte minutos após tomar o chá, percebi que eu estava um pouco alterada: comecei a chorar compulsivamente, sem um motivo claro. Não havia tristeza ou dor, porém. Era um choro que vinha me “limpando” e, de certa forma, era até feliz. A sensação de estar chorando era agradável e parecia me conectar não só com as outras pessoas da roda, como com toda a humanidade. Era uma sensação bonita.

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O choro me alcançou enquanto eu ainda não deitara na esteira que havia levado. Estava sentada e olhava para o fogo no centro da roda, prestando atenção em como a madeira se desmanchava sob as chamas. Quando deitei, após um tempo de choro constante, fechei os olhos e tentei entrar em um estado de concentração mais profunda, o que era bastante incentivado também pelas músicas.

Foi aí que eu senti.

Eu era a grama.

É claro que eu conseguia me distanciar racionalmente da experiência e ter clareza de que não, eu não era a grama, eu estava deitada numa esteira de ioga sobre a grama, com Ayahuasca no estômago e ouvindo músicas de meditação. Mas havia aquela sensação incontornável de que eu era a grama. A grama se confundia comigo, o ar passava por mim e movia minhas folhas, porque eu era a grama. Eu era a raiz e a terra. Eu era o vento sobre a grama. Houve uma espécie de dissolução do que eu percebo do mundo de forma palpável, mas, ao mesmo tempo, eu estava ali, racional, observadora, acompanhando tudo.

Eu não tive alucinações claras e em nenhum momento eu perdi a consciência. Estive o tempo todo “no controle” – o que não sei se é necessariamente o mais adequado durante uma experiência mística, mas foi como eu pude vivê-la. Ainda assim, tomar a Ayahuasca foi uma experiência bastante reveladora, especialmente para alguém tão caxias e medrosa como eu.

Foi interessante ver que os ritos interseccionam com o cristianismo, além de tocarem religiosidades indígenas e pensamento oriental. Curiosamente, esse sincretismo pareceu fazer sentido ali dentro e, ainda que eu não seja uma pessoa religiosa nem adepta de nenhuma dessas vertentes, perceber as pessoas experimentando suas religiosidades de formas tão peculiares, tão adequadas às suas próprias vivências, me fez bem. Porque, no fim, acredito que religião é isso mesmo – uma forma de conexão com o divino, com o bom e com o belo, independentemente dos meios pelos quais isso se dê. Se a experiência e o conhecimento oferecido a essas pessoas pela Ayahuasca as fazem melhores para si mesmas, para os outros e para o mundo, que haja mais e mais cerimônias, e que essa conexão sempre se estabeleça.

Saí da cerimônia com uma sensação boa de estar vendo pessoas que estão buscando melhorar a si mesmas, à comunidade ao redor e ao mundo. Isso me deixou muito feliz. Ainda não sei se voltarei a participar de outra celebração. Talvez sim, mas acho que não. Acredito que, o que eles encontram na meditação e nos estudos espiritualistas e místicos, eu encontro nos livros, na Palavra Escrita. A literatura é a minha religião, meu encontro com o humano e com o divino que há na humanidade. Então celebro. Peço benção aos que vieram antes de mim e, humildemente, traço minha própria palavra, na busca da minha voz.

É essa a minha religião.

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* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Dicas de Mulher.

Escritora, autora de "A mulher que ri", "Efêmeras" e "Do Silêncio". Apaixonada por Clarice Lispector, clubes de leitura e pessoas. Gosta de listar coisas de três em três.