COLUNA

Mirthes, agora te vejo e ainda te amo!

Dicas de Mulher

Na mininovela em dois atos, a colunista relembra a relação afetuosa com a aranha que morava em seu fusca amarelo

Segundo ato

Como contei no primeiro ato dessa mininovela, eu abrigava uma aranha no porta-luvas do meu velho fusca. Ela se chamava Mirthes e era meu animal de estimação.

Ocorre que, com o passar do tempo, minha carreira como professora foi se consolidando, o salário melhorou e, submetida aos ditames mercadológicos, desejei comprar um carro melhor. O fusca não me satisfazia mais. Num ato impulsivo, como sempre são aqueles gerados pelo consumismo, nem pensei em Mirthes: vendi o amarelinho e, quando me dei conta, eu estava no volante de um carro um pouco mais novo, sem meu pet.

Numa crise de saudade, cheguei a deixar farelo de pão no porta-luvas do carro que comprei, para ver se atraía uma prima ou uma amiga de Mirthes. Nenhuma apareceu. Definitivamente, nossa história estava encerrada. E sem nenhuma DR. Tentando ser um pouco como como Joseph Klimber (encenado pelo fabuloso Welder Rodrigues) – que nunca fica desmotivado e nunca desiste – procurei ressignificar essa história.

Numa determinada ocasião, fui comprar um presentinho barato em uma lojinha próxima ao espaço da antiga rodoviária de Maringá e percebi que quase todas vendiam animais de plástico, de silicone ou de resina. Parecia uma epidemia animalesca artificial. Havia, e ainda há, animais de todas as espécies, cores e tamanhos. Provavelmente, as crianças gostam muito de brincar e fantasiar com esses bichinhos.

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No afã de substituir Mirthes, não tive dúvida: comprei uma aranha de silicone e alojei-a no porta-luvas do meu carro. No Fusca, meu carro anterior, o porta-luvas tinha atuado como um útero produtivo. No carro novo, o útero estéril não foi capaz de gerar nenhum animal. Quando coloquei a aranha de plástico no seu porta-luvas foi como se eu tivesse produzido uma aranha de proveta. Criei vida artificial numa terra inóspita.

Passei a conversar com a nova aranha, como nos tempos de Mirthes. Mas tinha a sensação de que a artificial não era uma boa ouvinte. O simulacro nunca é a perfeita imagem do real. E, pior, com o passar do tempo tive que substitui-la várias vezes, pois o calor do carro deixava-a grudenta. Colecionei, e ainda coleciono, inúmeras aranhas, de materiais e de tamanhos diversos. Continuei a usar o nome Mirthes para as aranhas artificiais, mesmo sabendo que elas não chegavam aos pés, digo, às patas, da real.

Numa determinada época, achei que Mirthes merecia ter amiguinhos e passei a comprar cobras, sapos, lagartixas, baratas, morceguinhas… Meu porta-luvas, assim como eu, é democrático e inclusivo, sempre cabe mais um. Dei os nomes dos meus sobrinhos-netos para os novos habitantes do meu zoológico particular. A cobra é a Elô, a barata chama-se Bia, a lagartixa é Maricota, o sapo é Gui, a morcega chama-se Alice. E, obviamente, a aranha continua sendo Mirthes, com seu corpinho de silicone e principal dona do meu afeto.

Todos continuam habitando o porta-luvas do meu carro até hoje, mesmo que vez ou outra eu tenha que substituí-los. Os filhos dos meus sobrinhos fazem a festa com meu zoológico. Volta e meia sinto falta de algum animalzinho e logo descubro que um deles o afanou e transportou para outro habitat. À amiga leitora que possa ter achado estranha minha narrativa, lanço mão de uns versinhos de Bertolt Brecht para adverti-la:

“Mas a vocês nós pedimos
No que não é de estranhar,
Descubram o que há de estranho!
No que parece normal.
Vejam o que há de anormal!
No que parece explicado,
Vejam quanto não se explica!
E o que parece comum,
Vejam como é de espantar!”

Um abraço cheio de braços da Mirthes, a aranha de plástico.

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Dicas de Mulher.

Doutora em História, mestra em Educação e graduada em Pedagogia. Professora aposentada pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Mantém-se na luta cotidiana pela educação de qualidade, democrática e para todos.