COLUNA

Ela é a Barbie, não é a Simone de Beauvoir

Dicas de Mulher

Ao mesmo tempo, o filme da Barbie está longe de ser ingênuo

Sim, eu assisti ao filme da Barbie. Na primeira semana. Fui de rosa, tirei foto na caixa da boneca. Bem clichê, bem dentro do esperado do público do filme. Era isso que desejava o plano de marketing, eu fui lá e fiz. Não me arrependo. Mas, depois da diversão, vem a avaliação crítica.

E aqui estamos. Confesso que, apesar de ter entrado no hype, eu estava desconfiada: já fui enganada antes por produtos culturais pretensamente vanguardistas e gato escaldado tem medo até de água fria. Mas me surpreendi.

Por trás de uma estética intensamente pink, plástica e lúdica, o filme traz temas importantes. Machismo, patriarcado, desigualdade de gênero na sociedade e no mercado de trabalho, assédio… A gente que é feminista velha de guerra já está um pouco além do debate trazido ali e entende que o filme é o puro suco do feminismo liberal branco, é claro. A diversidade também é parcial: a Barbie grávida é alívio cômico, a Barbie cadeirante tem 15 segundos de tela. Apesar de haver certa gradação relevante de cores de pele e duas Barbies plus size, o elenco dá uma sensação um pouco tokenista – ou seja, uma inclusão simbólica, com concessões superficiais a grupos minoritários, mas nada tão radical. Tudo controlado e higienizado.

(Nisso, eu até entendo que haja uma intenção um pouco “subliminar” da diretora de trazer um deboche do modo branco e elitista de promover inclusão. Mas não vou por esse caminho na minha reflexão – não neste texto).

O que eu acredito que merece destaque é que o filme realizou um feito ousado. Veja, ele é um produto de entretenimento, mas leva questões importantes da luta pela igualdade entre os gêneros a pessoas que dificilmente acessariam essa discussão se não fosse assim: pegos de surpresa num filme comercial.

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A humorista Giovana Fagundes fez piada com um vídeo em que uma mulher, autointitulada Barbie de Maringá, critica o filme, dizendo que ele prega “o oposto do que ela defende na conta de Instagram dela”. A influencer ensina mulheres a se adequarem ao perfil “bela, recatada e do lar”, ou seja, a serem submissas aos seus maridos, aceitando as mais variadas violências.

Algumas das minhas amigas que também assistiram Barbie relataram ter visto homens levantando e indo embora da sessão no meio do filme, indignados. Há influenciadores conservadores e red pill dizendo que o enredo é “anti-homem” e orientando seus seguidores a não saírem com mulheres que gostaram do filme.

Para mim, esse tipo de reação só mostra que a gente, enquanto sociedade, está muito aquém do que deveríamos em relação às discussões de gênero. Assim, um filme como esse, mesmo um pouco raso e dicotômico em termos “teóricos”, é fundamental para estimular a reflexão de muita gente.

Barbie faz certas inversões de papeis e espelhamentos que, como instrumento didático, acabam levando muitas meninas e mulheres que nunca pensaram muito sobre feminismo a terem alguns insights. Por exemplo, o fato de o Ken ser um coadjuvante que “orbita” em torno da Barbie reflete a posição que a mulher ocupou por séculos – e frequentemente ainda ocupa – em torno do homem. A mulher existe apenas a partir da validação do olhar masculino. O Ken existe apenas a partir do olhar da Barbie. Por que o fato de o Ken – um homem – estar nesse papel incomoda tanto mais do que o que acontece cotidianamente na sociedade?

Isso me faz pensar que quem entende o filme como “anti-homem”, além de ser machista, pode sofrer de duas condições especiais:

  1. Não entende sátiras, sarcasmo e ironia.
  2. Não entende que, a partir desse espelhamento que o filme promove, Barbie só é “anti-homem” na mesma medida em que a nossa sociedade é “antimulher”, porque é reflexo e espelho – ainda que satírico – do que acontece com as mulheres no dia a dia.

Nesse sentido, vale voltar para aquela pergunta tradicional: por que a Barbie, uma mulher livre, autônoma, independente incomoda tanto – e tão mais do que um homem com os mesmos adjetivos? Note ainda: na Barbielândia, os Kens, mesmo não sendo protagonistas, estão vivendo eternas férias, se divertindo. A única relação com as Barbies é a tentativa de impressioná-las. Já na Kenlândia, as Barbies não só querem impressionar os Kens como estão o tempo todo os servindo, girando em torno deles. Por que incomoda tanto que a mulher simplesmente não gire em torno de um homem e gire – assim como qualquer homem – em torno de si: seus desejos, dúvidas, aspirações?

Tenho opiniões sobre esses assuntos, mas, mais do que respostas, quero deixar as perguntas. Porque eu acredito que é isso que nós podemos tirar do filme da Barbie. Ele criou certos incômodos, questionamentos e desconfortos em vários grupos de pessoas, de feministas a conservadores, passando por todo o espectro político. Para mim, é justamente aí que reside o seu valor: ele estimula o debate. Além disso, rir da nossa própria desgraça muito frequentemente é o primeiro passo para mudá-la.

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Não sou ingênua. Não acho que uma produção como essa seria possível se não houvesse benefícios para a Mattel. Afinal, o filme acaba funcionando como um gigantesco rebranding da marca Barbie – além de funcionar como um mea culpa higienizado em relação a tudo o que a ideia de perfeição estética da Barbie causou para gerações de meninas. É quase como se, como um namorado tóxico que reincide sempre nos mesmos erros, a empresa dissesse, por meio do filme: “desculpa, eu não sabia que estava te fazendo mal, mas eu vou mudar e agora tudo vai ser tudo diferente.”

Ou seja, é apenas o capitalismo absorvendo as mudanças sociais e se adaptando, em sua tradicional capacidade de “mudar sempre para que nunca mude”. Um sinal disso presente no filme é que, por mais que a diretoria da Mattel tenha sido ilustrada como um grupo de homens brancos, ricos e estúpidos, não há qualquer sinalização de que isso vai se alterar ao final, com, por exemplo, a entrada de mulheres nessa cúpula. Pelo contrário, mesmo a sugestão da criação de uma “Barbie normal”, ou “Barbie média”, que teria maior identificação com meninas e mulheres reais, só é aceita pelo CEO da Mattel quando um de seus parceiros diz que aquilo poderia dar dinheiro.

Além disso, eu acredito que o capitalismo, enquanto estrutura, só “permite” a existência de um filme assim porque hoje, com globalização, revolução tecnológica, identitária e afins, talvez haja menos interesse do mercado na manutenção de uma estrutura de desigualdade de gênero tão fixa e as formas de controle tenham migrado/se adaptado para outros formatos. Mais uma vez, a fórmula se repete: é mudar para não mudar.

Ao mesmo tempo, apesar de, por um lado, haver toda essa armadilha em torno do filme (de ser um rebranding, de estimular uma mudança que “cabe” no capitalismo tardio etc.) e, por outro, ele ter o potencial de ajudar algumas meninas e mulheres a despertarem e enxergarem situações de opressão e violência às quais são submetidas, a gente precisa considerar ainda outro ponto e lembrar que esse filme não precisa ter uma função social (e, na verdade, nenhum filme tem essa obrigação). Ele é um filme de entretenimento. A gente é que está exigindo dele que ele seja um tratado feminista ou dando a ele um tipo de poder muito maior do que aquele que ele realmente tem.

Como li no (saudoso) Twitter, “ela é a Barbie, não é a Simone de Beauvoir“. A gente só pode esperar de cada uma o que ela pode oferecer. Apesar de o filme se mostrar um objeto cultural interessante, a Barbie é um produto. Ainda que traga à tona importantes questões sobre gênero e poder, conquistando um público mais amplo, é essencial continuar questionando os interesses por trás dessas ações e garantir que a sociedade seja realmente representativa e inclusiva. O debate precisa avançar e se ampliar sempre, contemplando todas as formas de opressão e discriminação.

No fim, precisamos manter em mente que a mudança social genuína não é entretenimento ou estratégia de marketing, ela acontece na luta diária, nas micropolíticas. Nossos direitos não nos serão entregues num filme sobre uma boneca. Por mais que seja um filme ótimo, para rir, chorar e lavar a alma, ele não muda o mundo – e nem tem essa obrigação. A luta segue.

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Dicas de Mulher.

Escritora, autora de "A mulher que ri", "Efêmeras" e "Do Silêncio". Apaixonada por Clarice Lispector, clubes de leitura e pessoas. Gosta de listar coisas de três em três.