COLUNA

Barbie é um espetáculo fofo para a sessão da tarde

Dicas de Mulher

O filme da Barbie acumula clichês e não se aprofunda nas críticas sobre os estereótipos.

Dias atrás, fui à feira e levei um susto ao ver que algumas bancas estavam vendendo mandiocas rosadas. Demorei um pouco para processar a informação. Era a semana de lançamento do filme Barbie e uma onda cor-de-rosa tomou conta do planeta. A poderosa estratégia de marketing da Warner Bros Pictures, em conjunto com a Mattel, que produz a boneca desde 1959, gerou um “comportamento de manada”: milhões de indivíduos seguiram irracionalmente a onda cor-de-rosa e sua proposta de desconstruir estereótipos sexistas.

Há certa uniformidade nas opiniões e análises divulgadas sobre Barbie, de tal modo que parece, aos menos avisados, que todos “amaram” o filme, e sempre pelos mesmos motivos. Talvez, até a propagação desse pensamento consensual faça parte da estratégia de comercialização dos seus produtores.

Sem a pretensão de esgotar o debate ou de excluir pareceres já formulados, quero colocar meu “dedinho” nessa discussão. Mas, não vou me deter no que considerei positivo – por exemplo, o empenho da diretora, Greta Gerwig, de desconstruir estereótipos (frustrado, a meu ver) e as excelentes interpretações de Margot Robbie e Ryan Gosling.

A Warner Bros Pictures e a Mattel são grandes empresas que funcionam como qualquer outra no sistema capitalista, almejam obter vantagens financeiras impulsionando o mercado consumidor. Esse pressuposto nos leva a deduzir que seria improvável que seus produtos e propagandas subvertessem a lógica de mercado ou divulgassem ideias que fizessem ruir esse sistema.

Sabemos que muitas críticas a esse modelo excludente de sociedade são constantemente absorvidas pela cultura de massa (consumo). E, infelizmente, é o que tem ocorrido com o identitarismo e com a luta pela igualdade de gênero, contra o patriarcado. Temas de lutas sociais foram transformados em segmentos geradores de lucros.

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As críticas e reflexões desses movimentos, quando mercantilizadas, são suavizadas e mantidas numa fronteira segura para o sistema. O filme Barbie faz exatamente isso, esvazia esse debate, retirando-o da pauta da luta social e deslocando-o somente para o campo do empoderamento individual (necessário, mas não suficiente). Temas político/sociais complexos e difíceis são abordados de forma suave e palatável para todos.

Um exemplo do “dourar a pílula” aparece na forma rasa como o tema do patriarcado é inserido, de forma a reduzi-lo à “guerra cultural entre os sexos”, quando ele está ligado à propriedade privada e às formas de organizar a produção e dividir o trabalho.

Outro exemplo é a repetição, ad nauseam, do lema “a mulher pode ser o que quiser”, que pode até motivar individualmente as mulheres no mundo fantasioso da Barbie, mas não resiste à realidade crua e nua de um país no qual o feminicídio mata centenas de milhares de mulheres por ano; que mata as Marielles que ousam colocar o debate sobre feminismo, patriarcado e desigualdade de gênero colados a temas como pobreza e racismo. “Poder ser tudo o que quiser” não é a mesma coisa que ser tudo o que quiser. Possibilidades não garantem uma condição satisfatória e igualitária para mulheres de todas as classes sociais e raças. O mundo real é bem mais complexo e excludente. Aliás, o filme mobiliza muito mais as mulheres da classe média, ou acima dela. O feminismo marginal das mulheres pretas, indígenas, imigrantes, latinas, pobres, periféricas, trans, lésbicas, não é representado no filme.

Barbie enreda o público ao associar o empoderamento feminino à sociedade de livre mercado. Acena com o que o pensamento liberal melhor faz: concede às mulheres (e aos homens também) as vantagens da autonomia individual, da possibilidade de fazer escolhas e de crescer, “desde que se esforcem bastante”. Quando, na realidade, as desigualdades permanecem. Ou seja, o empoderamento feminino gerado pelo filme fica no campo motivacional.

Enfim, Barbie acumula clichês e não se aprofunda nas críticas sobre os estereótipos. No final, a disputa de poder entre homens e mulheres é mantida. Como disse uma amiga, “o filme é lindinho, mas a boneca ainda continua na caixa”. Barbie pode até nos convidar a entrar no debate sobre o sexismo, mas não aprofunda e não integra a luta contra o patriarcado com a luta por justiça social e econômica.

Não resisto, vou terminar juntando e mudando um pouco as letras de duas músicas, A queda, cantada pela Glória Groove, e Panis et circenses, dos Mutantes.

“Extra, extra!
Respeitável público
Não fique de fora dessa
Garanta seu ingresso
Um show tão maluco vai começar
Parece um colorido circo
Mas é um drama com perigo”

– A queda, Glória Groove

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“Preste muita atenção
Nessa corda bamba, quem vai caminhar é você
mulher
Pois as pessoas da sala de jantar então ocupadas em nascer e morrer”

– Panis et circense

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Dicas de Mulher.

Doutora em História, mestra em Educação e graduada em Pedagogia. Professora aposentada pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Mantém-se na luta cotidiana pela educação de qualidade, democrática e para todos.