COLUNA

Apelidos à flor da pele

Dicas de Mulher

Como os apelidos naturalizam padrões sociais e desrespeitam a diversidade

Em 21.09.22

Nossa identidade é constituída de muitos elementos e um deles é o nome que ganhamos ao nascer, mesmo que sejam nossos pais a cumprirem essa arbitrariedade. Além do nome, outro símbolo da nossa identidade são os apelidos que recebemos ao longo da vida. Os sentimentos que eles despertam nos deixam, muitas vezes, à flor da pele.

Geralmente, os apelidos estão relacionados a alguma caraterística física, comportamental ou a algum fato que tenha ocorrido na nossa vida. O ambiente escolar sempre foi um espaço/tempo fértil para essa prática. Talvez porque seja, depois da família, o primeiro grande espaço de sociabilidade.

Quando fiz o ensino fundamental e médio, ganhei vários apelidos, uns bem maldosos. Vou destacar três. O primeiro foi “botijão de gás”, com certeza uma danosa referência ao meu sobrepeso. Eu passava mal quando alguém se referia a mim desse modo, tinha taquicardia.

O cruel apelido gritava que era “errado” estar fora dos padrões de beleza. Eu era imobilizada e refém de modelos ditados por outros. Esse apelido afetou imensamente minha autoestima e carrego até hoje sinais desses maus tratos. Rotulada, eu “tolerava” os ataques. Minhas diferenças não eram respeitadas pelo coletivo.

Essa violência era naturalizada pela escola, que demonstrava muita dificuldade de lidar com as diferenças. Na época, eu não tinha a mínima noção de que a prática de apelidar era expressão do que estava ocorrendo em toda a sociedade, principalmente no que diz respeito à intolerância com a diversidade. Para ilustrar minha afirmação de que essa situação é muito mais abrangente do que apenas “um aluno apelidando outro” e de como a escola naturaliza essas ocorrências, citarei uma situação ocorrida recentemente.

Publicidade

Em 2018, algumas escolas da rede municipal de São José dos Campos (SP) distribuíram uma cartilha intitulada “A Fantástica Magia dos Alimentos”, com o objetivo de divulgar informações sobre alimentação saudável. No material, uma história em quadrinhos trazia personagens acima do peso e elas mesmas se comparavam a “botijões de gás”. Educadores comprometidos com a defesa do respeito à diversidade criticaram a cartilha e a prefeitura retirou o material das escolas. Porém, enquanto foi usada, a cartilha pode ter levado alunos a acharem natural chamarem uma pessoa que tem sobrepeso de “botijão de gás”. Esse episódio é apenas um exemplo de como o preconceito é um produto cultural social. No caso, o apelido homogeneíza representações sociais estereotipadas, consciente ou inconscientemente.

O segundo apelido negativo que recebi, ainda na escola, foi “patinha qüem qüem”, talvez por eu andar devagar e com os pés abertos ou, mais uma vez, por não estar dentro do padrão de beleza, como uma “patinha feia”. Na verdade, segundo um “dicionário de voz dos animais”, os patos grasnam “quá quá”. Acredito então que o “qüem qüem” deve ser a voz maringaense do pato. Ser chamada de “patinha qüem qüem” também afetou minha autoestima. Era atroz e, novamente, eu me sentia acuada.

Recentemente, soube que o ditador Bashar al Assad, presidente da Síria desde 2000, é chamado pela sua esposa, na intimidade do seu lar, de “patinho”. Nesse caso, o apelido parece até “fofo”, se considerarmos todos os crimes e violações dos direitos humanos cometidos pelo ditador. Por isso, defendo a tese de que o contexto social deve ser analisado para que se possa concluir algo sobre o apelido.

Essas duas alcunhas que recebi, “botijão de gás” e “patinha qüem qüem”, surgiram em razão de características físicas. Elas são discriminatórias, punitivas e funcionam como um tipo de bullying inaceitável. Os apelidos utilizados como “brincadeira” têm suas implicações em todos os aspectos da vida daqueles que os recebem. Para criar uma alternativa de pertencimento à escola, já que eu estava sendo motivo de chacota, passei a ser muito estudiosa, recebendo várias medalhas e diplomas de “melhor aluna”. Isso me deu um novo apelido, o terceiro com teor negativo que recebi na escola: “CDF” (cabeça de ferro).

Naquela época, eu não tinha a mínima noção de que minha carreira profissional de professora universitária seria construída também com base no fato de eu ser estudiosa. Isso não significa, porém, que apelidos maldosos sejam bem-vindos. Longe disso. Beber na História e nas Ciências Sociais me ajudou muito na compreensão desse fenômeno. Aliando isso a muita terapia, pude equilibrar melhor os conturbados sentimentos que emergiram como reação a esses apelidos.

Claro, não recebi apenas apelidos negativos. Quando eu tinha 19 anos, minha primeira sobrinha me apelidou de “Nana banana”. Eu estava dando banana amassada para ela e tentava ensiná-la a falar a palavra “banana”. Ela fez algumas associações entre os sons das palavras “banana” e “Ivana”, e acabou me chamando de “Nana banana”. Até hoje, na família, sou chamada de “Nana” ou “Nana banana”. Esse apelido é super carinhoso, pois está ligado a uma situação afetiva boa.

Há os que dizem que apelidos surgem sempre de brincadeiras e, por isso, deveriam ser bem aceitos. Porém, brincadeiras só são legais quando todos os envolvidos se divertem. Apelidos pejorativos nunca são bem-vindos. As escolas poderiam aproveitar essas situações para construir reflexões, discutindo o papel dos apelidos, a possibilidade de outras formas de comunicação nas interações sociais, os valores da convivência, do respeito e da tolerância, os estereótipos, os padrões sociais e a aceitação da diversidade.

Publicidade

Os apelidos podem dizer muito sobre a realidade social e é preciso aproveitar os momentos em que essa prática ocorre para desvendar as circunstâncias que contribuem para a sua produção e circulação. Essas adjetivações, endereçadas àqueles que estão fora dos padrões sociais, desprezam as múltiplas identidades e constituem-se num jogo de poder que reproduz a insatisfação com o outro.

Ultimamente, minhas queridas amigas têm me chamado de “Iva”. Ainda não sei por qual motivo me chamam assim. Talvez por seguirem uma tendência brasileira de abreviar nomes (por preguiça ou pragmatismo Regina vira “Rê”, Eloisa vira “Elô”), ou simplesmente porque sofreram uma síncope carinhosa. Expressando afetos, estigmas, ironias ou vivências, os apelidos acabam marcando nossa identidade. Para o bem e para o mal.

Enfim, de minha parte, entre “Nana” e “Iva” prefiro “Nana”. A sonoridade me pega. Mas, como a prática de apelidar está super conectada ao contexto, digo que, quando se trata das minhas queridas e afetivas amigas, elas podem me chamar dos apelidos carinhosos que quiserem. Tô que nem o Sidnei Magal: “me chama que eu vou. Eh-ô, eh-ô!”.

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Dicas de Mulher.

Doutora em História, mestra em Educação e graduada em Pedagogia. Professora aposentada pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Mantém-se na luta cotidiana pela educação de qualidade, democrática e para todos.