COLUNA

A mulher da casa abandonada não pode ser um bode expiatório para a branquitude

Thays Pretti

Podcast tem causado grande comoção entre os ouvintes e talvez revele muito mais sobre nossa sociedade do que intencionava

Atualizado em 12.07.22
Alerta: há spoilers leves no texto, mas, sendo um caso real, talvez o conceito de spoiler não se aplique muito.

Sim, estou falando do podcast ‘A mulher da casa abandonada’, do Chico Felitti.

Ele surgiu de mansinho: vi indicações do programa nas redes sociais de duas pessoas, soube que amigos queridos estavam ouvindo. Então, uma citação descontextualizada da Clarice Lispector vibrou dentro do meu coração, “renda-se como eu me rendi”, e coloquei o primeiro episódio para tocar, enquanto me preparava para limpar a casa no fim de semana.

Ouvi os episódios um atrás do outro, carregada no colo pela narrativa envolvente de Felitti. Ele é um ótimo contador de histórias, sabe como manusear as tensões e manter o ouvinte interessado e curioso. Disso não há dúvidas.

Porém, ao final dos episódios então disponíveis (o podcast ainda está em produção) e tendo deixado a emoção assentar, fiquei pensando: é uma história real, com pessoas que ainda estão vivas. Será que agitar essa água parada não é mais… delicado do que parece?

O podcast gira em torno de pessoas envolvidas em um crime muito chocante descoberto há cerca de vinte anos, nos Estados Unidos. Um casal de brasileiros (brancos, ricos e com formação acadêmica avançada) manteve uma mulher (negra, pobre e analfabeta) trabalhando por décadas em condições análogas à escravidão. O marido, Renê Bonetti, ficou nos Estados Unidos, preso pelo crime, mas a mulher, Margarida Bonetti, fugiu para o Brasil. Ela é a mulher da casa abandonada.

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Contar essa história tanto tempo depois do ocorrido, em um Brasil bastante diferente daquele que recebeu Margarida de volta, acirrou os ânimos dos ouvintes. A história revolta tanto pela gravidade do crime como por Margarida não ter pagado legalmente por isso. Digo “legalmente” porque ela não foi levada a julgamento e não foi encarcerada – ainda que, talvez, esteja pagando o crime de outros modos. Possivelmente, com a própria saúde e sanidade.

Ao mesmo tempo, Renê foi para a cadeia e ficou preso menos de sete anos, voltando a ter um emprego que lhe rende 250 mil dólares por ano depois disso. Muita gente que ouviu a história não achou o tempo de reclusão suficiente, considerando o crime, além de questionar essa reinserção social, que provavelmente não teria ocorrido se ele não fosse parte da elite como é. Concordo muito. Mas, apesar de já ser possível trazer aqui um debate sobre racismo estrutural e institucional – o que o próprio podcast já faz -, Renê legalmente pagou pelo crime. O que fazer com a indignação que permanece?

Desde o lançamento do podcast, uma multidão tem afluído à tal casa abandonada que dá título ao programa, movida tanto pela curiosidade quanto por certa ânsia de “justiça” – mesmo uma que fosse feita com as próprias mãos. As pessoas gritavam pela mulher, xingavam, jogavam pedras na casa.

A família tirou a mulher de lá devido a essa repercussão. Uma instituição de proteção aos animais resgatou as cachorras que estavam na casa e a vizinhança vê com bons olhos que a rua esteja agora limpa daquilo que a maculava. Ufa! Melhor assim, não?

Sou libriana, justiça e igualdade sempre foram temas importantes para mim. Essa comoção das pessoas em torno do caso, porém, me deixa de orelhas atentas.
Carrego de cor uma citação em latim que, para mim, é a pergunta principal quando falamos sobre aplicação da justiça: “quis custodiet ipsos custodes?”, ou seja, “quem vigia os vigilantes?”.

Essa frase é atribuída ao poeta romano Juvenal, mas eu a conheci por meio do quadrinho ‘Watchmen’, de Alan Moore. Ela sempre me põe pensando em quem está apto a julgar e, mais que isso, aplicar a justiça. Afinal, ainda que haja, sim, pessoas mais cruéis que outras, todos somos falíveis. Quem vigia os vigilantes?

O que o casal Bonetti fez foi desumano. Ponto. Mas… há correção? Qual o castigo ideal? Quem está apto a aplicá-lo? E, outra questão importante, por quanto tempo uma condenação é válida após um crime? São perguntas para as quais eu não tenho uma resposta pessoal clara, por mais que existam as respostas legais.

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Para além disso, apenas como exercício, vou um pouco mais fundo: a casa abandonada está localizada em Higienópolis, um dos bairros com o metro quadrado mais caro de São Paulo e onde mora boa parte da elite paulistana. Elite essa que é, em sua maioria, branca. Quantos dos moradores da região podem dizer que nunca foram racistas com alguém?

Notem, não estou diminuindo a culpa do casal. Eles escravizaram uma pessoa, isso não deve ser perdido de vista nem por meio segundo. Estou, sim, dizendo que nós, pessoas brancas, precisamos assumir coletivamente a responsabilidade por esse acontecimento, sem usar o caso dessa mulher para expiar nossas próprias culpas.

Não sou de emitir opiniões fortes, mas preciso sustentar esta: a mulher da casa abandonada não pode ser um bode expiatório para a branquitude. Pelo contrário, ela é um reflexo do que nós, enquanto coletividade, produzimos ao longo de séculos de socialização racista. E revela nada menos do que o nosso sintoma, a nossa doença levada às últimas consequências.

Quando digo nós, muita gente pode ficar de pelo eriçado, com vontade de mandar um “mas eu não” ou um “mas nem todo branco”. Como resposta, repito: nós. Ainda que nossos “eus” individuais não sejam racistas, também é um ato antirracista assumir a responsabilidade coletiva da branquitude, para, assim, conseguir efetivamente colaborar na transformação social.

É importante entender que essa mulher não é um monstro, não é um ser apartado e absolutamente diferente de nós. Aliás, o episódio cinco do podcast mostra isso, ao revelar outros casos de pessoas submetidas a regimes de trabalho análogos à escravidão. Curiosamente, todas mulheres negras.

Assim como um estuprador é um sintoma de uma sociedade machista baseada na cultura do estupro, a mulher da casa abandonada é uma radicalização do modo como nossa sociedade racista vem tratando pessoas negras há séculos. Apedrejá-la e xingá-la não limpa as nossas mãos, assim como linchar um estuprador não altera a estrutura que permite que ele exista.

Lançar nossa violência sobre esses “desviantes” (o racista, o estuprador) pode nos aliviar temporariamente, mas o quão efetivo isso é para evitar que outras pessoas repitam esse mesmo ato? Para mim, essa é a pergunta fundamental.

Acho válido tomarmos essa situação exemplarmente, sim. É importante nos indignarmos, sentirmos nojo. É essencial que a radicalização desse nosso sintoma social nos revire o estômago. Mas, antes de atirar pedras, é fundamental olharmos para nossas mãos. Observarmos como estamos atuando, se estamos de fato sendo antirracistas no nosso cotidiano – ou se isso é apenas a necessidade de anular no outro aquilo que não desejamos enxergar em nós mesmos e na sociedade da qual fazemos parte.

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Para finalizar, espero que os próximos episódios e os desdobramentos desse caso nos movam definitivamente para o lado certo da História, aquele que realmente se responsabiliza pela construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

Bom podcast (e aprendizado) para todos nós!

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Dicas de Mulher.

Escritora, autora de "A mulher que ri", "Efêmeras" e "Do Silêncio". Apaixonada por Clarice Lispector, clubes de leitura e pessoas. Gosta de listar coisas de três em três.