COLUNA

Sobre ChatGPT, inteligência artificial e poetas

Dicas de Mulher

Será que o ChatGPT passa no teste da malemolência?

Eu tinha 14 anos na primeira vez que eu realmente pensei a respeito de Inteligência Artificial. Foi em 2001, quando Steven Spielberg lançou o filme ‘A.I. – Inteligência Artificial’, com Jude Law e o fofíssimo Haley Joel Osment. É claro que eu já havia ouvido o termo antes disso – tivemos computador em casa desde que eu tinha uns 10 anos, então a ideia de “inteligência” e/ou lógica da máquina me era familiar desde muito cedo. Mas pensar sobre isso é um pouco diferente de ter notícias e presságios de sua existência.

Lembro de ter visto o filme e me perguntado se realmente chegaríamos ao ponto apresentado na história. Havia várias questões éticas sendo postas e, com 14 anos, eu sequer imaginava que, no correr dos anos, ética seria algo tão frequente em discussões sobre internet e inteligência artificial. Naquele momento, os questionamentos levantados pelo filme apenas ligaram um alerta.

Agora, um salto temporal para 2022, quando ouvi pela primeira vez sobre uma ferramenta chamada ChatGPT.

Trabalho em um publisher digital com sites de assuntos diversos, focados principalmente em SEO – Search Engine Optimization. Isso significa que nosso conteúdo tem o objetivo de atender necessidades ou responder dúvidas dos usuários de internet, oferecendo um conteúdo de qualidade e reconhecível pelas ferramentas de busca como a melhor resposta para tal ou tal fim. Assim, um dos principais focos da empresa é o texto.

Quando meus gestores me falaram sobre o tal ChatGPT, explicaram que era uma espécie de inteligência artificial sendo testada, em constante “aprendizado” e que poderia escrever sobre qualquer assunto que alguém solicitasse. Ainda não há muita clareza sobre os problemas que isso pode causar para nossa área, mas já há uma primeira grande preocupação: como diferenciar um texto humano do texto de uma máquina?

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Eu, como escritora, sei que há muito mais por trás de um texto do que uma conexão lógica entre um amontoado de palavras. Há um algo. Se eu fosse uma romântica ou um pouco mais espiritualizada, poderia chamar esse je ne sais quoi de “alma” ou “sopro de vida”. Como sou mais afeita a brasilidades, prefiro chamar de “borogodó”.

E, vocês sabem, as máquinas não têm borogodó.

Apesar dessa minha descrença, eu sou curiosa. E, outra: é claro que sempre haverá quem as use para fins escusos, mas as ideias e invenções em si são, na maioria das vezes, amorais. Ou seja, neutras como toda ferramenta, nem boas, nem más. Se alguém investiu tempo para inventar uma ferramenta que produz textos automatizados, pode haver algum fim positivo e ético para isso… Ou pode ser apenas o Sol e Lua em Libra no meu mapa astral me fazendo acreditar que o mundo é, em essência, justo, bom e belo.

Não vou arriscar escolher uma das opções. Fato é que abri o tal ChatGPT e comecei a explorar a ferramenta, pedindo que realizasse pequenas tarefas. Comecei com uma mensagem de aniversário e uma declaração de amor. Os resultados estavam completamente de acordo com a solicitação, mas foram bastante genéricos e frios. Nada surpreendentes.

Na sequência, pedi para a máquina escrever um texto educativo sobre Clarice Lispector, com três citações e três referências. Esse me surpreendeu. O texto que surgiu em poucos segundos diante dos meus olhos contava com informações precisas, bem-organizadas e já não tão genéricas. Rastreando fontes pela internet, a aplicação conseguiu me entregar um texto limpo, lógico, racional. Fiquei boquiaberta. Literalmente.

Eu estava testando os limites da ferramenta, então não parei por aí. Pedi que elaborasse algumas questões sobre um determinado conto da Clarice. Ela conseguiu. Pedi, então, que respondesse às perguntas elaboradas. E foi a partir desse ponto que ela começou a patinar e a “encher linguiça”. As respostas ficaram evasivas, repetitivas, circulares. Em suma, mecânicas.

Para mim, fez muito sentido. Saber que Clarice publicou tantos livros, em tais anos, e que tais e tais livros são importantes para entender sua obra são coisas relativamente fáceis. Elaborar perguntas sobre o assunto também. Agora, discorrer sobre como a linguagem usada no texto se relaciona com a solidão vivenciada pelas personagens do conto Laços de Família é algo que vai além da capacidade da máquina de buscar informações prontas na internet. Ou seja, a inteligência artificial habita – ao menos por enquanto – o campo da informação e da lógica. A reflexão e a análise estão em outro lugar, aonde a máquina não chega.

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Ao descobrir esse seu “ponto fraco”, comecei a brincar com a inteligência artificial, desafiando-a ainda mais. Pedi que escrevesse um poema sobre tomar sopa. A máquina me entregou um texto em quadrinhas, sem ritmo e sem lógica – mas com rimas. Pedi que escrevesse um poema contemporâneo sobre abacaxis. Mais quadrinhas rimadas, e a máquina ignorou por completo o termo “contemporâneo” da minha solicitação. Pedi ainda um soneto de amor, mas aparentemente a única forma fixa de fazer poema que o ChatGPT conhece são as quadras.

Depois de passar algum tempo em testes, encontrei algumas possíveis utilidades para a ferramenta e mais limitações, especialmente em tarefas que exigem um uso mais artístico, reflexivo e analítico da palavra. É compreensível: acredito que a maioria dos programadores que trabalham com isso não sejam escritores ou poetas. É difícil conseguir reproduzir artificialmente o borogodó que nem em você está lá muito desperto. Então entendo que a máquina não tenha essa malemolência. Como reproduzir algo que você nem sente como é?

O ChatGPT surpreende a princípio. Não duvido que ainda avance e melhore muito. Mas, ainda que seja uma inteligência, precisamos lembrar que ela é artificial. E acredito (ingenuamente?) que isso vai ser sempre um divisor de águas que nos ajudará a diferenciar o que foi feito por trabalho humano e o que foi feito pela máquina. A gente reconhece a mão de outro ser humano quando a vê.

Não sei o que será do futuro dessa ferramenta. Não sei o que será desse tipo de texto que ela consegue reproduzir melhor. Terá relevância? Se misturará cada vez mais a outros textos (humanos) espalhados pela internet? Eu realmente não sei. Estou apenas atenta ao que o futuro trará.

No momento, o que eu quero mesmo é tranquilizar a todas(os) as(os) poetas e escritoras(es) com borogodó. Amigas e amigos, nós ficaremos bem. A inteligência artificial ainda não substituiu os poetas. Aliás, quem sabe não estejamos mais próximos do que nunca de um maior reconhecimento da nossa atuação na sociedade? Talvez seja chegada uma nova era para nós, os renegados, aqueles para quem a maior paixão e habilidade é soprar vida na boca de cada palavra e colocá-las juntas, em movimento, tão dançantes e reluzentes quanto máquina nenhuma saberia reproduzir.

Aguardemos, com nossa malemolência a postos na ponta dos dedos.

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Dicas de Mulher.

Escritora, autora de "A mulher que ri", "Efêmeras" e "Do Silêncio". Apaixonada por Clarice Lispector, clubes de leitura e pessoas. Gosta de listar coisas de três em três.