COLUNA

Mesmo em um monólogo, não se faz Teatro só

Dicas de Mulher

Além de trazer um texto ao mesmo tempo reflexivo e engraçado, Ficções, com atuação de Vera Holtz, nos convida ao fascínio da experiência teatral

“Eu seguro a minha mão na sua, eu uno meu coração ao seu, para que juntos possamos fazer aquilo que eu não posso e nem quero fazer sozinha: Teatro”. Foi com essa oração – a oração do Teatro – que a atriz Vera Holtz, prestes a completar 70 anos, recebeu o Prêmio Shell de Teatro, no dia 21 de março de 2023.

Quatro dias depois, eu estava na FAAP, assistindo à última apresentação em São Paulo da peça Ficções, um monólogo estrelado por ela e dirigido por Rodrigo Portella, que está circulando pelo país desde o ano passado.

A peça dialoga com o livro ‘Sapiens: uma breve história da humanidade’, do israelense Yuval Noah Harari. Só que, em vez de ser uma adaptação, eu diria que o texto é uma espécie de transposição – o que nos é apresentado não é o que está no livro em si, mas uma reflexão em torno dele.

Se eu for usar meu vocabulário do dia a dia, também posso dizer que o texto é uma grande pira que o Portella tirou com o livro e habilmente transformou em um texto de teatro. Ele passa sobre diversos pontos cruciais de nossa evolução enquanto humanidade e nos faz pensar nos erros e acertos – e, para ser bem sincera, especialmente nos erros – de nossa sociedade atual. Uma curiosidade aqui é que a personagem foi pensada desde o início para a atuação de Holtz, o que dá ainda mais relevância para certas cenas de humor.

Mas, calma. Antes de continuar este texto, preciso confessar uma coisa: não sou uma grande expectadora da teledramaturgia brasileira, de modo que não tenho uma porção de referências que vários amigos têm da atuação de Vera na TV. É uma falha, peço perdão. Até há pouco tempo, eu sabia da atriz, de sua importância, adivinharia seu nome se jogasse Perfil e ela estivesse no cartãozinho da vez. Não me seria tão fácil, porém, lembrar de trabalhos seus.

Publicidade

Então veio a pandemia e a mulher tomou conta do Instagram.

Como uma Marina Abramović brasileira, Vera Holtz viralizou com fotos conceituais que dialogavam com o momento político e social do Brasil. Eram fotos que ela já tirava há anos, mas que a internet, em sua insondável dinâmica algorítmica, tratou de impulsionar durante o isolamento social de 2020. A sequência de fotos de Vera diante de um copo de chá de boldo logo após o carnaval de 2016, por exemplo, são uma obra de arte impossível de descrever em uma única coluna.

Tenho profunda admiração por mulheres assim, tranquilamente subversivas, aquelas que são tão donas de seu espaço e de seus poderes que nem precisam brigar por eles. Elas os assumem com a paz de quem já tem seu lugar. A ferocidade mora no próprio existir – um existir confortavelmente poderoso. Nessa categoria se encaixam mulheres que sempre me arrebataram, como Gal, Clarice e Lygia.

É nelas que busco me espelhar. São elas as referências para a construção diária da minha própria rebeldia suave, minha firme mansuetude. Meus exemplos para pacientemente não arredar o pé daquilo que desejo, enquanto elegantemente me desvencilho do que não quero. Sem alarme.

Percebi, durante a peça, que Vera tem esse poder. Quando a vi no palco, sorridente, irreverente, crítica, meu primeiro pensamento foi: ela é dona desse lugar. Ocupa todo o palco, não há espaço para mais nada. Ficamos, então, ali. Ela, habitando o espaço que é seu por direito, e eu, envolta no fascínio de vê-la existir.

O mais curioso é que, apesar de Vera preencher aquele teatro com sua existência, o multi-instrumentista Federicco Puppi, que a acompanhava em sua atuação, cabia ali. Vera era tão dona do seu espaço que, sem que ela renunciasse a um centímetro, ele cabia. Pode parecer contraditório, eu sei, mas é que o espaço, vocês sabem, assim como o tempo, é relativo. Existir e deixar existir, sem que você diminua: essa é uma das mais potentes habilidades que alguém pode ter.

Durante a peça, numa radicalização desse gesto, há várias interações da personagem com a plateia. Nesse momento, nós, expectadores, também passamos a existir. Ela nos traz para perto, nos “empodera” a ocupar o espaço cênico. E tudo sem perder seu lugar, seus poderes. Contrariando a física, dois corpos podem ocupar o mesmo espaço. Vera preenche o teatro inteiro. E nós, cada um a seu modo, ocupamos como podemos o lugar correspondente à nossa própria capacidade de existir.

Publicidade

Isso é o Teatro.

Entrei ali com uma única expectativa: a de experimentar um gostinho da bonita conexão apresentada pela oração do Teatro repetida por Vera Holtz na ocasião de sua premiação. O que recebi foi muito mais. Foi a certeza de que, realmente, não é possível fazer Teatro sozinho. Porque o Teatro é, enfim, essa comunicação que une nossas existências e nos faz habitar, por um breve momento, o corpo e a alma do artista transfundido em espaço teatral.

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Dicas de Mulher.

Escritora, autora de "A mulher que ri", "Efêmeras" e "Do Silêncio". Apaixonada por Clarice Lispector, clubes de leitura e pessoas. Gosta de listar coisas de três em três.