COLUNA

Entre a ficção e a realidade: a estrada que vai do mundo aos livros também volta

Dicas de Mulher

Quando entendi que os livros me inseriam no mundo, em vez de me isolar dele, foi que me apaixonei por suas páginas

Quem acompanha esta coluna já sabe que eu realmente gosto muito de livros. Para mim, eles nos ensinam a lidar com esse mundo doido no qual fomos lançados. O que experimento intelectual e emocionalmente por meio dos livros me faz melhor, me conecta às outras pessoas e, em especial, me faz alcançar experiências – de vida e estéticas – muito diferentes das que eu normalmente tenho no meu dia a dia.

Para exemplificar, os meses de janeiro e fevereiro de 2023 me impactaram cada um por um motivo diferente: uma experiência e uma notícia. Ambas as situações me remeteram a livros, ‘A ocupação’, de Julian Fúks, e ‘As vinhas da ira’ de John Steinbeck.

Não são leituras recentes, mas ambos estão no meu imaginário. E isso me ajudou a pensar certos acontecimentos por meio da literatura, vivendo a experiência a partir de outro patamar. É um reflexo da força do diálogo que existe entre os livros e o mundo real.

Vamos para cada um deles.

Janeiro: A ocupação

No começo deste ano, vivi uma experiência que me tirou um pouco da minha zona de conforto: fui visitar a Ocupação Dom Helder Câmara, que está sendo organizada pela Frente Nacional de Luta Campo e Cidade (FNL) em Paiçandu, uma cidade vizinha a Maringá, onde moro.

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Era uma manhã de domingo. Minha mãe foi comigo, e encontrei por lá algumas amigas e outras pessoas conhecidas do cenário cultural de Maringá. Houve um evento de apresentação da ação, em que, além de atrações culturais para os moradores, haveria explicações para visitantes sobre o funcionamento do espaço.

As condições não são as melhores. São mais de 100 famílias adaptando para moradia os apartamentos de um conjunto de prédios inacabados. Falta muita coisa, desde alimentos e roupas a móveis e eletrodomésticos – mas é tudo organizado. Montaram uma cozinha coletiva, numeraram manualmente os blocos e os apartamentos. E todo mundo se ajuda. Isso foi muito bonito de ver. Me senti em contato com uma humanidade mais basilar, visceral. A humanidade que precisamos ter entre todos nós, o tempo todo. E com a qual estamos em falta.

A obra ocupada pertencia à Construtora Cantareira, ligada à família de um ex deputado federal e há anos em processo de falência. O investimento custou mais de R$ 20 milhões de reais aos cofres públicos e ali seriam construídos cerca de 500 apartamentos Minha Casa Minha Vida. Passados mais de 9 anos, os prédios seguem abandonados e inacabados. Todos os financiamentos foram cancelados. Houve prejuízo para muita gente. Mas os responsáveis… Bom, meu palpite é que estão por aí, muito tranquilos. Afinal, nem é grande coisa dever 20 milhões ao governo e acabar com o sonho da casa própria de inúmeras famílias, não é mesmo? (Sim, eu fui irônica).

Minhas motivações para estar presente nesse café da manhã de apresentação da ocupação foram várias. A primeira delas talvez tenha sido minha necessidade de ver as coisas com meus próprios olhos para entender de cór, ou seja, com meu próprio coração. Sem opiniões intermediárias, queria ver e ouvir sobre a ocupação a partir de quem a organiza, não de quem, de fora, acha que sabe o que acontece ali. Queria entender empiricamente o que era aquilo brotando do asfalto de Paiçandu.

A segunda motivação certamente foi o livro ‘A ocupação’, de Julian Fúks, que me fez ter um olhar muito mais sensível para esse assunto. Nesse livro, Fúks fala sobre a ocupação de um prédio no centro de São Paulo e, para isso, transita entre uma narrativa que é ao mesmo tempo pessoal e engajada. Porque o pessoal é sempre político. O modo como vivemos e nos relacionamos é mediado o tempo inteiro por política – seja num âmbito mais “moral”, seja em um campo mais voltado à política econômica, seja ainda em outros campos. Ter ou não ter acesso a saúde, educação, casa e emprego, para além de um aspecto pessoal da vida de cada família, é, também, político.

Eu talvez não tivesse essa sensibilidade, se não conhecesse, antes, o livro de Fúks. Assim como o personagem, eu também refleti sobre meu papel naquele contexto. Não me falta casa nem meios para viver. Não compartilho aquelas experiências e demandas. Mas a leitura me deixou preparada para sentir com o outro. Tocar a experiência do outro com os dedos, ter empatia, compaixão. E agir.

Isso é muito poderoso.

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Isso é a potência do livro, da obra de arte.

Minha visita à ocupação foi em janeiro de 2023. Corta agora para fevereiro, quando veio a público uma notícia que me deixou de coração partido.

Fevereiro: As vinhas da ira

“As Vinhas da Ira” é um romance escrito em 1939 por John Steinbeck. Nele, o autor conta a história de uma família de agricultores de Oklahoma que, durante a Grande Depressão dos Estados Unidos, se vê obrigada a deixar suas terras e partir em busca de trabalho e sobrevivência na Califórnia. A narrativa mostra a luta dessa família contra as dificuldades impostas pelo sistema social da época e contra a exploração dos trabalhadores rurais nas grandes fazendas californianas.

Para quem não sabe, vinhas são conjuntos de videiras – ou parreiras, se preferir – o tipo de planta de onde nasce a uva. E a Califórnia é um estado dos EUA que há séculos se dedica à produção de vinhos. Ou seja, nesse romance, temos trabalhadores pobres lutando contra péssimas condições de trabalho na produção e colheita de uvas.

Soou, de algum modo, familiar para você?

Em fevereiro de 2023, em Bento Gonçalves, Rio Grande do Sul, seis homens conseguiram fugir de vinícolas e denunciaram o que estavam sofrendo à Polícia Rodoviária Federal. A partir dessa denúncia, o Ministério do Trabalho e a PRF resgataram, no dia 22 de fevereiro, mais de 200 pessoas, em sua maioria nordestinos, em condições de trabalho análogo à escravidão. Eles passavam por violência física, longas jornadas de trabalho na colheita da uva e consumo de alimentos estragados. Também eram vigiados por seguranças armados e retirados da cama com armas de choque.

Devido à repercussão do caso, no dia 28 de fevereiro, o Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves emitiu uma nota afirmando que as vinícolas acusadas seriam inocentes, já que a colheita seria administrada por uma empresa terceirizada. Defendeu ainda que isso teria ocorrido devido à falta de mão de obra decorrente de “um sistema assistencialista” que estaria fazendo uma população “com plenas condições produtivas” se manter “inativa” (em tese, dependendo de auxílios de programas sociais).

Além de ser um julgamento absurdo e sem fundamento, pela nota, é possível entender que, para esse órgão, é justificável explorar pessoas de modo forçado e abusivo se elas não se submeterem à exploração por iniciativa própria. Discordo totalmente da visão que a nota traz de quem recebe auxílio do governo. Mas, supondo que fosse real, isso daria o direito de explorar trabalhadores a essas vinícolas?

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Como se não bastasse minha indignação com a situação toda, ainda me deparei, quando pesquisava sobre o caso para escrever este texto, com uma matéria intitulada: “Enólogos temem repercussão do caso de trabalho análogo à escravidão para reputação do vinho brasileiro”. E, me desculpem os enólogos, mas, se a reputação do vinho brasileiro é mais importante do que os brasileiros que trabalham na produção desse vinho, eu quero que essa reputação vá às favas. Estamos dando relevância a coisas erradas.

Ok, para ser justa, a matéria até menciona indignação de pessoas da área com o fato. Mas a preocupação sobre como o caso vai refletir no mercado talvez tivesse que vir após uma outra muito mais palpável: como o mercado, os produtores e outros grupos envolvidos nesse campo vão evitar que isso se repita e, mais, garantir que isso não ocorre também em outras vinícolas brasileiras? Mais do que pensar na imagem, não seria melhor se preocupar com a estrutura? Talvez o foco não deva ser tanto no parecer quanto no ser de fato. Uma cadeia produtiva humanizada nunca terá de se preocupar com sua imagem no mercado: ela certamente estará limpa.

Desde que esse caso estourou, outros trabalhadores em condições parecidas já foram resgatados em fazendas do Rio Grande do Sul. Não duvido que isso aconteça por todo o país, na surdina, aproveitando a crise econômica e o imperativo biológico de nos mantermos vivos. É lastimável, exasperante. Mas, à parte essa indignação, o que eu quero registrar é que, mais uma vez, eu só me comovo tanto com essa experiência porque antes das vinhas da ira reais vieram outras, literárias, ficcionais, que me ensinaram a abrir os olhos para uma experiência na qual eu não tinha pensado antes. Foi a leitura que me preparou para manter o coração aberto e no lugar certo ao me deparar com esse tipo de violência social.

Não estou dizendo que isso só se dê pela leitura, claro. A literatura é a que mais me alcança, mas a arte e a cultura em geral têm uma capacidade gigantesca de nos humanizar. O teatro, a dança, o cinema, a pintura, a música, a escultura etc. Nos conectamos mais com umas do que com outras, de acordo com nossa própria personalidade. Mas todas elas carregam esse potencial – e digo “potencial” porque isso também depende do modo como absorvemos cada obra e se o objetivo dela é de humanização, de fato. Há obras com outros objetivos (e tudo bem, isso nunca foi um problema para mim).

No dia 09 de março de 2023, o clube de leitura do qual eu participo, Bons Casmurros, completou 10 anos. Frequento-o há quatro. Sempre fui leitora, mas conversar sobre os livros lidos, debater, refletir, com certeza potencializa o poder que os livros têm de me tornar mais humana. Se eu puder deixar uma sugestão, deixo essa: além de ler (ou assistir a filmes, peças, o que for), converse sobre as obras com outras pessoas. Isso enriquece muito a experiência e sempre nos deixa melhores.

Simone de Beauvoir, a respeito da mulher, já disse que “não se nasce mulher, torna-se”. Ela estava falando sobre o que socialmente entendemos como “mulher” e que aprendemos a ser no decorrer de nossa socialização. Acho que a mesma frase cabe bem para o sentimento de humanidade. Eu poderia dizer que “não se nasce humano, torna-se” com bastante convicção. E um dos modos para nos tornarmos humanos é a cultura.

Então, que a gente busque absorver cultura por todos os meios possíveis, nas artes, nas ciências, nas diferentes formas de espiritualidade. Tudo é válido se nos faz olhar para o mundo com mais compaixão.

E talvez, assim, tenhamos cada vez menos necessidade de ocupações e de resgates como esses de janeiro e fevereiro – ou possamos mantê-los apenas no espaço da ficção.

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Dicas de Mulher.

Escritora, autora de "A mulher que ri", "Efêmeras" e "Do Silêncio". Apaixonada por Clarice Lispector, clubes de leitura e pessoas. Gosta de listar coisas de três em três.