COLUNA

Benditas coisas que eu lembrei

Zélia Duncan

Um resumo do suprassumo do que 'Benditas coisas que eu não sei', livro recém-lançado de Zélia Duncan, trouxe para fora da minha caixinha de lembranças

Em 23.06.22

Minha memória musical mais antiga é de quando eu tinha por volta de uns quatro anos e subia e descia o longo corredor que levava à casa que eu morava, em São Paulo, cantando Era um garoto que como eu amava os Beatles e os Rolling Stones, dos Engenheiros do Hawaii. A música é de 1990 e tocava em todas as rádios nos primeiros anos da década de 90.

Eu não fazia ideia do sentido da letra. Entoava o “ratatata” sem imaginar que imitasse uma metralhadora, e nem suspeitava o que teria sido a guerra do Vietnã. Mas percebia, dentro da minha capacidade infantil, que havia algo intenso naquela canção. Então cantava gritando, sentindo.

Outra memória musical que tenho da mesma época é de uma tia paterna cantar Taí, da Carmen Miranda, toda vez que íamos visitá-la. Mas ela colocava meu nome no lugar do “taí” que abre a letra. Era assim:

“Thays, eu fiz tudo pra você gostar de mim
Ah! meu bem, não faz assim comigo não
Você tem, você tem que me dar seu coração”

Demorei anos até saber que, na verdade, a música não tinha meu nome. Quando descobri, fiquei chateada por minha tia ter “mentido” a música. Depois entendi ser um carinho e uma delicadeza com aquela sobrinhazinha com um nome muito pouco poético para realmente ganhar uma canção.

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Revivi essas e outras memórias musicais a partir de uma leitura que fiz no último final de semana do livro ‘Benditas coisas que eu não sei’, lançamento recente da cantora (e artista múltipla) Zélia Duncan. Em vinte e três textos (mais uma “faixa bônus”) muito aproximados de crônicas, Zélia fala sobre diversos assuntos, mas, principalmente, sobre música. Com isso, vai puxando uns fios de dentro da gente, ligando umas luzes há muito apagadas, nos fazendo lembrar. Porque se tem uma coisa que se conecta visceralmente com nossas memórias, essa coisa é a música.

A autora percorre lembranças de sua infância, fala sobre músicas e sons “herdados” de familiares e de suas primeiras vivências como cantora e compositora. É uma abordagem muito afetiva e intimista, que comprova algo que ela fala logo em seu primeiro texto: a música está presente em tudo, em todos os momentos da nossa vida.

Com muito ritmo em suas frases e escolhas de palavras, Zélia Duncan também apresenta diversas influências musicais que teve durante sua trajetória, colocando a gente nesse estado de querer ouvir não só o trabalho dela, mas toda essa trilha afetivo-musical que ela apresenta.

Estou, aliás, fazendo exatamente isso desde que terminei de ler o livro. Passei por algumas de suas referências, e há dois dias não consigo ouvir outra coisa que não seja Ella Fitzgerald. Antes dessa leitura, só a conhecia superficialmente. O livro me reapresentou a ela como uma amiga que me indicasse um álbum do qual gosta muito, “você TEM que ouvir isso”.

Há uma frase no livro que diz que “o intérprete que se mistura com uma canção passa a ser identificado com ela mesmo que não seja de fato seu autor”. Penso que essa frase também serve para nossa relação de leitores com um bom livro: é difícil não ser alcançado e se identificar, nem que seja apenas com a humanidade de um personagem. E foi assim que eu vivenciei essa leitura.

A obra também me lembrou que Zélia Duncan está conectada a uma das minhas mais importantes memórias musicais da minha adolescência. Foi dela a primeira apresentação ao vivo que eu assisti na vida. E isso só aconteceu por meio da minha maior paixão, a literatura.

Explico: como comentei em uma coluna anterior, eu flerto com a escrita e com os livros desde muito pequena. Escrevia muito, participava de saraus na escola, fazia declamações de poesia.

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No segundo ano do Ensino Médio, já morando no Paraná, fiz parte de uma equipe de alunas selecionadas para escrever um poema para o Prêmio Viagem Nestlé pela Literatura, representando nossa escola. Seria selecionado um poema por região e nós fomos selecionadas para representar a Região Sul. Um grupo de alunas de escola pública, de uma cidade do interior do Paraná (Sarandi, região metropolitana de Maringá), foi selecionado para representar a Região Sul, vencendo todas as outras escolas públicas e privadas do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul participantes. Foi uma honra.

Nosso prêmio, que não sabíamos o que seria até o último momento, foi uma viagem para a cerimônia de premiação em São Paulo, um troféu, vários chocolates e uma entrada para um show no Tom Brasil, em São Paulo. A apresentação à qual assistiríamos seria justamente da Zélia Duncan – de quem eu já gostava, principalmente pelas letras poéticas de suas canções (sou desde sempre mais atenta às letras do que a qualquer outro aspecto das músicas que eu ouço).

Isso foi em 2004, mas a lembrança segue fresca como se tivesse sido ontem. Ao ler seu livro, me identificando e conectando com suas reflexões, senti estar diante de um colorido espetáculo de diferentes artes se intercalando. Foi a poesia de suas letras que me levaram a admirá-la, foi a literatura que me permitiu ver seu show pela primeira vez. E, quando chego enfim ao seu livro, à sua literatura, o que mais ressoa em mim é… sua música. Sua paixão pela música, pela composição.

São conexões que só a arte permite. Por meio dela, por meio desse sangue que flui das veias de uns para os outros que vivem e respiram e amam a arte, criamos nossas referências e familiaridades. E aqui creio que cabe uma citação que, para mim, é uma das melhores do livro: “Só dá para entender a distância entre o trampolim e a água se é você que está entre um e outro”. Apesar de ter sido usada em outro contexto, também vale: porque só habitando este espaço múltiplo e mágico da arte para entender o quanto ela pode nos mover e alcançar.

Não sei se você vai se identificar tanto quanto me identifiquei com o ‘Benditas coisas que eu não sei’ ao lê-lo. Cada um é cada um, e tudo bem. Mas posso apostar todas as minhas fichas que o livro vai trazer boas memórias à tona, como um flautista de Hamelin que, com o som de seu instrumento, as conduz para fora daquela caixinha em que as lembranças ficam guardadas. Vocês sabem, algumas obras têm esse dom. E ainda bem.

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Dicas de Mulher.

Escritora, autora de "A mulher que ri", "Efêmeras" e "Do Silêncio". Apaixonada por Clarice Lispector, clubes de leitura e pessoas. Gosta de listar coisas de três em três.